Dono de uma pródiga imaginação, o cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) costumava dizer que muitas vezes seus filmes nasciam de detalhes insignificantes, como a impressão provocada por uma cor, pela lembrança de um olhar ou de uma música, que sempre voltavam à memória de forma obsessiva e atormentadora. Sua obra-prima A doce vida, por exemplo, começou a tomar corpo quando Fellini viu uma mulher descer a exclusiva Via Veneto, em Roma, enfiada num vestido que parecia uma alcachofra. Outras vezes, porém, a realidade lhe presenteava com personagens prontas, caso de Noites de Cabíria (1957), tragicomédia escolhida para abrir a Coleção Fellini em DVD, que começa a ser lançada esta semana pela Versátil Home Vídeo. A inspiração para a prostituta Cabíria, vivida de forma inesquecível por sua mulher, Giulietta Masina, veio de uma pobre meretriz que Fellini encontrou nos arredores de Roma. Ela chamou sua atenção por viver num casebre feito de latão e caixas de fruta e, mais ainda, por recebê-lo com palavrões e pedradas. Apesar de haver tentado três vezes o suicídio “por amor”, a prostituta continuava a vida com energia redobrada, exatamente como a chapliniana Cabíria do filme.

Além do título clássico que conserva intacta a poesia e a humanidade deste período da obra do diretor, mensalmente a Coleção Fellini colocará nas lojas Ensaio de orquestra, Mulheres e luzes, A trapaça, A estrada da vida e Ginger e Fred. Em 2003 continua com A doce vida, A voz da lua e mais três filmes da fase inicial do cineasta. São lançamentos que merecem ser cobertos de louros, tal o cuidado com as imagens restauradas. Para marcar a ocasião, Noites de Cabíria sai em edição dupla, trazendo o documentário Fellini, um auto-retrato (2000), assinado por Paquito Del Bosco. Trata-se de uma edição de reportagens do arquivo da Rai, a rede de rádio e televisão italiana, que traça um ótimo perfil do cineasta, cobrindo de 1952 a 1975. Além dos bastidores de A doce vida, Fellini oito e meio, Fellini Satyricon e Julieta dos espíritos, o documentário traz entrevistas nas quais o diretor discute seus dados astrológicos, descreve seu domingo ou divaga sobre a litania de sinos da sua cidade natal, Rimini. Sempre com aquela espirituosidade que parece estar na origem da explosão de vida de seus grandes filmes.

Mas o melhor mesmo fica por conta de Noites de Cabíria, com os sete minutos inéditos cortados da versão original a pedido da Igreja italiana. A cena ajuda a compreender a decisão de Cabíria em mudar de vida através do seu périplo noturno com um homem que oferece comida e cobertores para sem-teto. O filme traz ainda muitos elementos do neo-realismo, movimento surgido no pós-guerra pelo olhar sociológico e histórico de Roberto Rossellini (1906-1977), o próximo diretor italiano a ser contemplado com uma coleção em DVD iniciada em breve com Roma, cidade aberta. Ainda neste ano, os próximos retratados serão Michelangelo Antonioni e Luchino Visconti.