O pediatra Leonardo Posternak se unea especialistas das áreas da saúde,da cultura e da educação para cuidarda criança e seus vínculos

Nem todos os pais sabem, mas, quando seu filho apresenta uma dor de barriga sem origem aparente, o problema pode ser, na verdade, um sintoma de desconforto emocional. Nem sempre essa hipótese faz parte do diagnóstico. Em geral, se a queixa não tiver causas palpáveis após os exames clínicos e laboratoriais, a criança toma um remedinho para aliviar o mal-estar, é observada alguns dias e o caso se encerra por aí. Mas, se o mesmo sintoma reaparece frequentemente, pode motivar mais uma rodada de testes. Nos moldes da pediatria tradicional, aprendida nas melhores escolas de medicina, essa conduta é irretocável. No entanto, esses sintomas que vão e voltam poderiam ser abordados de outra forma para entender melhor os sentimentos e o estado emocional dos bebês e das crianças. Mas esse tipo de observação exige do especialista que conheça mais profundamente a família, estrutura fundamental para a sobrevivência nos primeiros anos de vida. “A dinâmica da família pode influenciar o aparecimento de sintomas físicos ou psíquicos”, afirma o pediatra Leonardo Posternak, 57 anos.

O argumento de Posternak está baseado em três décadas de convivência
com pais e filhos. Com a experiência, entendeu que poderia buscar nas relações familiares subsídios para avaliar reações e sintomas e que as mães precisam
muito de alguém que as ouça e ajude. Atualmente, o pediatra divide o tempo
entre o consultório, o Hospital Israelita Albert Einstein e o Comitê de Saúde
Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Também escreveu dois livros.
O primeiro, E agora, o que fazer? A difícil arte de criar os filhos, teve edição esgotada. O segundo, O direito à verdade – cartas para uma criança, ganhou o prêmio Jabuti de Psicologia de 2003.

Como ele, especialistas em psicologia, filosofia e gestão do conhecimento, entre outras áreas, têm se dedicado a estudar essa delicada interação entre pais e filhos e sua influência nos processos de saúde e doença. Esse conjunto de pessoas decidiu somar suas experiências para criar um centro de pesquisa sobre as necessidades do desenvolvimento da criança no núcleo familiar e na sociedade, o recém-nascido Instituto da Família. Nesta entrevista concedida a ISTOÉ em seu apartamento, no bairro do Morumbi, em São Paulo, Posternak falou sobre os objetivos do instituto, que dirige, e da necessidade de os especialistas darem mais valor ao papel da família.

ISTOÉ – Por que criar um instituto para cuidar da família? Ela está mudando?
Leonardo Posternak

Sim. Ela já mudou e está passando por mais mudanças. Já não existem mais famílias ampliadas, nas quais irmãos, tios, padrinhos, cunhadas e outros parentes tinham uma convivência estreita e trocavam opiniões sobre assuntos do cotidiano, como a saúde e a educação das crianças. Esse modelo de família praticamente desapareceu. O que existe agora são famílias nucleares (formadas apenas pelo pai, pela mãe e por um ou dois filhos), em que todas as responsabilidades estão nas costas do casal. Além disso, as mudanças no comportamento e os avanços da medicina estão fazendo surgir novos tipos de famílias. Um levantamento realizado nos Estados Unidos apontou, por exemplo, que nos últimos cinco anos houve um aumento de 25% no número de homens sozinhos que adotaram crianças. E há ainda casais homossexuais e pessoas que decidem ter filhos sem parceiros fixos, com a ajuda de técnicas de reprodução assistida. Porém, independentemente das características desse grupo e do nome que tiver – família, clã ou o que quer que seja –, sem ele a criança não sobrevive. Nós precisamos refletir sobre essa nova realidade e aprender a trabalhar com ela.

ISTOÉ – Quais as consequências dessas mudanças?
Leonardo Posternak

Os pais estão mais sozinhos para resolver suas dúvidas. E, quando procuram ajuda, acabam consultando vários especialistas. A mãe fala com o professor ou orientador pedagógico quando há alguma dificuldade de aprendizagem, vai ao psicólogo se algo não está bem no comportamento ou visita o pediatra se o problema é uma doença orgânica. Mas isso cria uma visão fraturada da criança e do seu desenvolvimento psíquico e físico. Há situações nas quais os sintomas que uma criança manifesta significam conflito na família, e não conflitos nela mesma. E é necessário estar atento a isso para cuidar delas de uma forma mais abrangente na prevenção das doenças e dos vínculos afetivos familiares.

ISTOÉ – E por que é importante para o especialista cuidar desses vínculos?
Leonardo Posternak

A família é peça central e fundamental da sociedade. Não dar a devida atenção a ela é levar a sociedade à falência. Por isso precisamos ser capazes de ajudar pais e filhos a fortalecerem seus vínculos. Uma das funções dessa família é dar limites, ensinando o filho a lidar com doses toleráveis de frustração e a aceitar as diferenças. É a partir desses vínculos familiares que a criança aprende a conviver, a respeitar e a se relacionar com uma realidade, que pode trazer satisfação ou frustração. Isso é importante para que o indivíduo tenha condições de enfrentar um mundo que pode frustrá-lo. A falta desse aprendizado cria uma confusão em que a criança – e mais tarde o adolescente ou o adulto – não sabe o que é adequado ou não. Ignorar essas questões pode ter desdobramentos, como a intolerância e a violência. Isso pode estar na base da agressividade que faz um torcedor bater em outro que veste uma camisa do time rival. Essa violência explode no estádio, mas é trazida de outro lugar e pode estar alimentada por vínculos frágeis ou inexistentes na família. Cuidar dos vínculos pode ajudar a prevenir esse tipo de coisa.

ISTOÉ – O pediatra é o profissional indicado para ajudar a família?
Leonardo Posternak

O pediatra se define como especialista em crianças, mas na verdade é um médico da família. O pediatra e psicanalista inglês D.W. Winnicott dizia que “essa tal de criança não existe sozinha, ela é parte de uma relação”. A família é um lugar de afeto e de conflito que deveria ser cuidada sempre, e muito. Se não fosse assim, o filho poderia vir trazido por um motorista ou babá que não faria diferença. A presença da família – especialmente da mãe – é indispensável para entender o que acontece com essa criança. E a consulta é um espaço único para avaliar tudo isso. Mas o que percebemos é que hoje em dia, por diversos fatores, a família é pouco convidada a participar. E a mãe nem sempre é convidada a falar sobre suas angústias. Na verdade, ela se encontra em uma espécie de vácuo. Sim, porque quem cuida dela após o nascimento do bebê? Antes de engravidar, tinha um ginecologista. Durante a gravidez, teve um obstetra. Quando o filho sai da barriga, o pediatra cuida dele. Porém, quando ela leva o filho à consulta, traz consigo essa doença normal e maravilhosa de ser mãe, que lhe permite, por exemplo, criar um código para entender o filho em poucas semanas. Os bebês nascem cheios de enigmas, como se fossem estrangeiros falando uma língua desconhecida, que a mãe vai traduzindo para ambos se comunicarem. Cuidar dela significa cuidar também do bebê.

ISTOÉ – Como é uma consulta que olhe para a criança e sua família?
Leonardo Posternak

Temos uma situação comum, como a dor de barriga, em que um sintoma corporal é o motivo principal da consulta. Pode acontecer com certa frequência que os exames clínicos, laboratoriais e radiológicos pedidos pelo
médico não apontem nenhuma evidência orgânica para esse sintoma e não permitam fechar o diagnóstico. Diante desses resultados, em geral se diz aos pais, para tranquilizá-los, que “a criança não tem nada”. Mas isso não resolve, porque a criança continua com dor de barriga. Habitualmente, o episódio se encerra por aí. Mas isso não é verdade, porque a falta de uma evidência orgânica não é suficiente para esquecer essa dor de barriga, que pode ser a forma de a criança manifestar um conflito. Muitas vezes, ela usa o seu corpo para comunicar que alguma coisa ao redor ou dentro dela não está bem.

ISTOÉ – Como seria um novo olhar sobre esses sintomas?
Leonardo Posternak

Esse novo olhar está apoiado em uma aproximação maior com
os pais. Depende de muita conversa com eles para descobrir situações que
possam estar estressando a criança. E isso precisamos fazer de modo a não responsabilizar nem culpar os pais. Culpar não é cuidar. Não é possível ser um médico no sentido amplo da palavra se não soubermos lidar com as angústias de nossos pacientes e suas famílias.

ISTOÉ – As mães ficam muito aflitas quando o bebê não dorme e chora a noite toda. Como os pediatras encaram essas situações?
Leonardo Posternak

Pode-se avaliar os sintomas e tratá-los com alguns medicamentos. Mas não é tudo. Conversando com as mães, o pediatra pode tentar pesquisar alterações da dinâmica que impliquem o aparecimento desses sintomas. E também precisa ter em mente que é necessário preparar essas mães para enfrentar o que chamamos de crises previsíveis do desenvolvimento. Elas acontecem nos primeiros anos de vida e cada uma tem suas especificidades, mas todas se manifestam com um quadro parecido. A criança fica muito grudada com a mãe, chora muito e não dorme. Uma dessas crises típicas é a angústia do oitavo mês ou a crise da separação. A criança acorda chorando várias vezes porque sente medo de que a mãe desapareça após colocá-la no berço. A falta de informação pode fazer pensar que esse choro é dor de ouvido, cólica ou um dentinho nascendo. Mas, como não é, dar remédios seria medicalizar algo que pode ser prevenido com informação. E é importante saber que esse bebê quer apenas a mãe nessa hora. Se o pai for ajudá-lo, a criança pode achar que estava certa e que a mãe não voltará mais. No entanto, o apoio do marido à sua mulher nessa hora é muito importante.

ISTOÉ – Os pediatras aprendem a lidar com essas situações na faculdade?
Leonardo Posternak

Não. As crises previsíveis fazem parte do desenvolvimento psicológico, que pode até ser mencionado nas escolas médicas, mas sem a profundidade necessária para mudar a abordagem do futuro pediatra. As escolas de medicina nos formam como excelentes médicos organicistas. Aprendemos a fazer diagnósticos, a buscar a relação entre causa e efeito e a atuar sobre ela com os recursos mais modernos da medicina. Com a prática, percebemos que precisamos treinar o olhar para ver o que não está tão evidente e às vezes aparece na forma de um sintoma passageiro.

ISTOÉ – Como o Instituto da Família pretende interferir nessa realidade?
Leonardo Posternak

O instituto está sendo criado com o objetivo de ser um pólo de referência e debate sobre as necessidades do desenvolvimento da criança dentro da família e na sociedade. Estamos organizando um curso de extensão universitária para pediatras que vai ajudá-los nas suas intervenções para promover e prevenir a saúde e tratar a doença. Durante dois anos eles serão bolsistas para aplicar esses conceitos na clínica diária. Depois de formados, esses mesmos especialistas se constituirão em multiplicadores para formar outros pediatras. Essa questão da multiplicação é fundamental para um país com as necessidades do Brasil. O currículo desse curso está sendo desenvolvido por um grupo de renomados especialistas de várias áreas, como psicologia, filosofia, sociologia e psicopedagogia, além da pediatria. Terá pautas temáticas em vez de disciplinas para que a interdisciplinaridade ligue todo o conteúdo. Nós queremos que o objeto de estudo tenha várias abordagens. Teremos também outras atividades no instituto, como subsidiar e participar de projetos junto a órgãos públicos e entidades nas áreas de capacitação e acompanhamento da formação. Ainda vamos ter um espaço no qual pais e filhos poderão conviver, brincar e desenvolver atividades com as nossas equipes. Nesse espaço funcionará um fórum permanente para os pais. Será uma porta aberta para tirar suas dúvidas.

ISTOÉ – Quando o instituto começará a funcionar?
Leonardo Posternak

Já nos constituímos como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), com o apoio de um grande escritório de advocacia, Mattos Filhos Veiga Filho Marrey Jr. Quiroga Advogados. Contamos ainda com a auditoria de Antoninho Marmo Trevisan, um dos nomes mais conhecidos desse ramo no País. Agora entramos na etapa de captar recursos para implementar a sede e o primeiro curso-piloto. Estamos certos de que existem muitas empresas interessadas em investir em um projeto que intervenha nas áreas de saúde, cultura e educação.