“Se o inimigo conseguir penetrar nossa defesa numa frente ampla, consequências de tremendas proporções se seguirão dentro de curto tempo.”

A declaração de Adolph Hitler se referia a uma possível ofensiva anglo-americana. Ela aconteceu no histórico Dia D, o 6 de junho de 1944, e foi conclamada pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill como a mais difícil operação de todos os tempos. A idéia da invasão aeronaval nas praias da Normandia, costa ocidental francesa, foi de Churchill, que em 1940 já acreditava que uma frente de combate na França iria obrigar Hitler a dividir suas forças.

“Esta foi a mais importante e complexa batalha do Ocidente. Por duas razões: libertou a Europa e estancou o nazismo”, afirmou a ISTOÉ John Keegan, considerado o maior historiador militar vivo e autor de livros como The Second World War e Six armies in Normandie: from D-Day to liberation of Paris. “Se não ganhássemos naquele momento, seria muito mais difícil vencer a guerra depois. E a vitória de Hitler seria a maior desgraça para o mundo”, continuou o historiador sobre o início da derrocada do nazismo. Exatamente 60 anos depois da maior operação militar, reúnem-se na Normandia 17 chefes de países. Pela primeira vez, foram convidados para a cerimônia um líder russo – a URSS era aliada do Ocidente, mas passou a ser inimiga com a guerra fria (1945-1989) – e um alemão – gesto ainda mais significativo, uma vez que os aliados (EUA, Canadá, Inglaterra, França e Rússia) combatiam a Alemanha nazista. Portanto, desembarcam no domingo 6 no porto artificial de Arromanches o chanceler alemão, Gerhard Schröeder, o presidente russo, Vladimir Putin, a rainha Elizabeth II da Inglaterra, o presidente George W. Bush e outros convidados do presidente francês, Jacques Chirac.

A comemoração acontece em um momento delicado em que antigos aliados, como França e EUA, têm hoje posições diametralmente opostas sobre a mais polêmica guerra do momento, a do Iraque. Bush viaja à Europa para conseguir apoio internacional na sua falida empreitada no Iraque e já garantiu um jantar com Chirac e sua mulher, Bernadette, no Palácio Champs Élysées.

Antes de embarcar na quinta-feira 3, o presidente americano, em campanha para reeleição, ensaiou na Academia da Força Aérea, no Colorado, uma comparação entre o combate na Segunda Guerra Mundial e a guerra contra o terror. “Assim como os eventos na Europa determinaram o desfecho da guerra fria, os eventos no Oriente Médio determinarão o curso de nossa luta. Se essa região for deixada para os ditadores terroristas, será uma fonte constante de violência”, disse ele. Se o discurso de Bush foi para levantar o moral das tropas, depois das denúncias de torturas e baixas entre os soldados americanos, que fique por aí. Até porque a coragem dos soldados pode ser a única interseção entre a invasão da Normandia e a guerra do Iraque. “Não há como comparar a guerra do Iraque com o que aconteceu em 1944. Vivíamos a ameaça do nazismo. A guerra do Iraque começou porque acreditava-se que lá havia armas de destruição em massa”, afirmou Keegan.

Inimaginável – Militarmente, a operação do Dia D, que deslocou 156 mil soldados americanos, britânicos, canadenses e franceses, seria hoje impensável por várias razões. Dois dias antes do ataque, a pior tempestade das últimas décadas desabou sobre o canal da Mancha e fez com que a ofensiva fosse adiada em um dia. Os soldados enfrentaram a famosa Muralha Atlântica, um conjunto construído pelos nazistas com 1.800 fortalezas de concreto, com obstáculos como minas, ninhos de metralhadoras e arames farpados. A cena épica de desembarque foi retratada de forma quase realística no filme O resgate do soldado Ryan, do diretor americano Steven Spielberg. No final do Dia D, nas praias Sword, Juno, Gold e Utah – à exceção de Omaha –, os aliados perderam 8,6 mil homens. A poderosa ofensiva contra os nazistas durou 80 dias e matou 80 mil alemães, 34 mil aliados e quase 13 mil civis franceses, que desgraçadamente foram vítimas de intensos bombardeios.

Na memória dos veteranos, alguns deles beirando os seus 80 anos, este foi literalmente o pior dia de suas vidas. Na madrugada do dia 6, dez mil pára-quedistas americanos e britânicos saltaram de aviões C-47. Ao pular de um deles, um sargento orou: “Senhor, seja feita a tua vontade, mas, se eu tiver de morrer, ajude-me a morrer como um homem.”

Apenas na 82ª divisão, 36 pára-quedistas morreram afogados. Apesar das baixas, a operação foi um sucesso, graças a dois elementos essenciais: o segredo e a surpresa. Poucos generais sabiam da ofensiva que teria três mil embarcações e 500 navios de guerra. Além disso, a máquina Enigma criptografou os sinais secretos dos alemães.

Hitler também foi pego de surpresa. Ele sabia que poderia sofrer um ataque na costa francesa e, se houvesse vitória, ela representaria “uma ameaça direta ao coração do complexo industrial básico da Alemanha, a região do Reno-Ruhr”, como explicou em seu livro O Dia D 6 de junho – A Batalha Culminante da Segunda Guerra o falecido historiador americano Stephen E. Ambrose.

Mas o ditador calculava que esse ataque se daria em Calais, cidade fronteira com a Bélgica e o ponto mais próximo do Canal da Mancha. Para confundir os nazistas, os aliados chegaram a realizar bombardeios nessa região a 240 quilômetros de onde foi o desembarque. Outro fator decisivo e casual foi a dispersão dos pára-quedistas, causada por descontrole dos lançamentos aéreos.

“Com toda a tecnologia contemporânea, seria impensável imaginar essa vitória. Hoje, facilmente os satélites identificariam os navios nos portos ingleses e os aviões partindo da Inglaterra”, afirmou Keegan. “A Segunda Guerra foi a última convencional. Houve uma transformação radical nas concepções de conflitos, principalmente depois da guerra do Golfo (1991). A guerra do século XXI é tecnológica, com mísseis de longo alcance, de precisão quase milimétrica.

Mas a concepção clássica das Forças Armadas – Marinha, Exército e Força Aérea – permanece atual neste novo e fantástico cenário militar”, afirmou o general brasileiro Octávio Costa, ex-combatente da Segunda Guerra Mundia. “Quem tem hoje os submarinos estratégicos, concebidos para destruir grandes cidades, e o tático para destruir navios são Estados Unidos, Rússia, Inglaterra e França”, completou o almirante brasileiro Hernani Fortuna.

Desavenças – Mas já em 1944 eram visíveis as desavenças entre os aliados. O chefe do Comando Supremo Aliado, o general Dwight Eisenhower (que se tornou presidente dos EUA entre 1953 e 1960), divergia das estratégias do marechal inglês Bernard Montgomery. Eisenhower, um grande personagem desta guerra, optava por um ataque em etapas, enquanto Montgomery pregava um golpe rápido e único.

Prevaleceu a vontade inglesa. Para os soviéticos, a ofensiva foi considerada de menor importância na Segunda Guerra Mundial. Dois anos antes, as tropas do ditador soviético Josef Stalin, em uma intensa ofensiva, derrotaram a Wehrmacht (Forças Armadas da Alemanha nazista) nas batalhas de Stalingrado e Kursk.

Entre junho de 1941 e o final da guerra em maio de 1945, cerca de nove milhões de soldados soviéticos foram mortos. “Não dá para minimizar a importância e eficácia do Exército Vermelho. Mas os russos não podem desprezar a invasão da Normandia”, disse o historiador britânico. Mas a verdade é que, 11 meses depois do Dia D, a Alemanha se rendeu aos vencedores. Além dos debates sobre as operações militares que se prolongam até nossos dias, permanece a idéia de que os aliados ocidentais trouxeram a liberdade à Europa. Um discurso essencial à história das democracias, mas frequentemente utilizado de forma irresponsável pela política unilateral americana.