Para quem tem como referência a costa brasileira, formada de praias e areia finas, matas tropicais e muitos rios, o litoral norte do Peru, país vizinho de 28 milhões de habitantes, é surpreendente. As águas geladas do oceano Pacífico e o solo pedregoso e seco que desenham suas praias compõem uma paisagem diferente, às vezes inóspita, quebrada aqui e ali por vales verdes ao longo dos rios que descem da cordilheira dos Andes. Lá quase nunca chove. Mas foi essa adversidade climática que possibilitou àquele país a conservação de um de seus maiores tesouros: os sítios arqueológicos. Uma riqueza que vai além das cidades de pedra dos Incas, um povo de espetacular poderio que dominou a região antes da invasão espanhola. Por isso, quando se fala do Peru, o turista pensa logo em Machu Picchu, a cidade dos Incas, ao sul do país. Porém, ao norte, povos pré-incas deixaram lá suas culturas gravadas em – acredite – barro. Na verdade, em adobe, um tijolo sem cozimento usado na construção de pirâmides, tumbas, casas, enfim, cidades inteiras, que resistiram ao tempo, aos tremores de terra e às eventuais chuvas trazidas pelo El Niño.

Os achados arqueológicos são muitos. Na capital, Lima, de oito milhões de habitantes, costuma-se dizer que em povoados recentes não se deve fazer buracos. Corre-se o risco de descobrir um esqueleto sob o piso do quarto ou da cozinha. Os objetos em ouro e prata, adornos próprios dos grandes líderes dos povos andinos, claro, já são peças mais difíceis de achar. Os que sobreviveram aos “huaqueros” – profanadores e ladrões de tumbas – estão nos museus da região. E são esses museus uma das atrações, além das próprias construções, algumas com inscrições e cores originais. Lima tem a beleza da arquitetura colonial no centro histórico, mas são suas ruínas de barro que fazem o visitante voltar às eras faustosas que lhe deram o nome de Cidade dos Reis.

A apenas 31 quilômetros ao sul, está a cidade sagrada de Pachacámac. Era para esse centro religioso e administrativo que os líderes dos povos andinos peregrinavam para consultar o deus Pachacámac, representado por um totem de madeira com duas faces, uma mirando o futuro e a outra para o passado. As previsões do deus eram transmitidas pelos sacerdotes, garibados previamente por uma infusão de ervas de San Pedro. O primeiro gole da beberagem alucinógena, dizem, era jogado à terra, também deificada por eles. A receita ainda é usada pelos xamãs, curandeiros que hoje mesclam o cristianismo à fé de seus ancestrais. Lá também está o Templo das Virgens do Sol, uma espécie de convento que preparava as mulheres dos grandes líderes.

Mas a rota ao norte de Lima exige disposição, curiosidade e várias “botijas” d’água, um bem muito precioso naquelas paragens. Uma garrafinha chega a custar US$ 6 (R$ 18) em alguns hotéis, ou, na moeda local, cerca de 20 nuevos soles (US$ 1 = 3,40 soles). No comércio, paga-se 2,50 soles. Bom, mas o melhor programa é pegar um avião para Chiclayo, capital do Estado de Lambayeque, a 770 quilômetros de Lima. Lá pode-se escolher que tumba visitar. Em Ferreñafe, localidade próxima, está o Museu de Sicán, que exibe os costumes do povo do mesmo nome, que viveu na região de 750 d.C. a 1150 d.C.

O sítio arqueológico de Sicán começou a ser estudado em 1990. A tradição funerária dos Sicán, com tumbas
em forma de poço, foi única na história pré-hispânica. Algumas continham mais de uma tonelada de adornos
e mais de 20 pessoas sacrificadas. Foram descobertas lá duas tumbas de senhores da elite de Sicán. Numa delas, foi encontrado um homem de cabeça para
baixo, com o pescoço tracionado e o rosto virado
para uma cena de parto, feita por duas mulheres. Um símbolo para o despertar no além, onde acreditavam manter o mesmo status.

Em Tucume, a 33 quilômetros de Chiclayo, fica o Vale das Pirâmides, onde foram encontrados vestígios de várias culturas – Moche, Chimú e Inca. No centro do complexo de 220 hectares se encontra uma montanha sagrada, batizada pelos espanhóis de Cerro Purgatório. De lá, se observam 26 pirâmides do século X. A arquitetura é avançada, com sobreposição de blocos de tijolos com dois centímetros de distância entre si – uma estratégia contra os abalos sísmicos. A pirâmide Huaca Larga impressiona: tem 700 metros de comprimento, 280 metros de largura e 30 metros de altura.

A abundância de ouro, prata e bronze da região e a maestria com que esses povos lidavam com esses metais se torna indiscutível no complexo arqueológico Tumbs Reales. São 13 tumbas suntuosas de líderes mochicas encontradas em 1987. O povo mochica viveu na região do ano 100 a.C. ao 750 d.C. No mausoléu, foram enterrados dois senhores de Sipán, além de sacerdotes e militares. Debaixo e sobre o corpo de um dos líderes, havia 11 peitorais, cinco colares, dois cetros, braceletes, narigueiras, cintos e outros adornos, tudo em ouro e prata. Junto com ele foram enterrados dois guerreiros, um militar, três mulheres, um porta-estandarte, uma criança, um cachorro e duas lhamas. “Esse achado foi pioneiro pela sua integridade. Foram encontradas dez mil peças, 1.600 delas já recuperadas e expostas ao público”, explica Walter Alva, arqueólogo responsável pela descoberta e diretor do museu.

Trujillo, capital do Estado de La Libertad, é outra parada obrigatória. Fica a 561 quilômetros de Lima e lá se pode-apreciar as Huacas do Sol e da Lua, centros cerimoniais mochicas, onde se achou uma tumba com 40 guerreiros sacrificados. O Templo do Sol é uma pirâmide escalonada com cerca de 43 metros de altura.
O da Lua é um monumento de templos superpostos, feitos em vários períodos.
O mais interessante da visita é que o local parece um canteiro-de-obras. Por todo lado, estão escavando ou escovando delicadamente um detalhe das pinturas de cores originais. Nas paredes, o culto à Ai-Apaek, a maior divindade mochica. “Fazemos a prevenção com água destilada e barro”, explica Victor Castañera, 53 anos, envolvido no projeto há 13 anos.

Como se vê, o Sol e a Lua, assim como as montanhas, eram deificados por essas civilizações. A quatro quilômetros do centro de Trujillo, Chan Chan, do século XIII, é prova disso. Chan Chan quer dizer Sol Sol. Construída pelo povo chimú, ela é a maior cidade modelada em adobe da América pré-hispânica. Tem 20 quilômetros quadrados e estima-se que nela viveram 100 mil pessoas. É um labirinto, com pirâmides, praças, muralhas e um admirável sistema de aquedutos subterrâneos.

Depois de tanta andança pelas cidades de barro, uma boa pedida é deixar o litoral seco e pedregoso e subir os Andes – só uns 2.750 metros – até Cajamarca. A partir de Trujillo, são seis horas de ônibus, mas vale a pena. Pela janela, aparecem os vales férteis dos rios que descem das montanhas. A diferença de altitude pode provocar certa indisposição, mas nada que umas estimulantes folhas de coca mascadas não resolvam. Assim como fazem
os povos andinos. Cajamarca é uma cidade termal, onde a água brota a 70 graus centígrados. Em Baños del Inca, pode-se relaxar nas mesmas águas tépidas, nas quais Atahualpa, um dos chefes do Império Inca, se refazia em 1532, quando foi capturado pelas tropas do espanhol Francisco Pizarro. E isso sem o risco de ser surpreendido por um invasor.