A conversa de dois empresários ao telefone, no final da manhã de 22 de janeiro, é naturalmente tensa. Um fala de Brasília, outro do Rio de Janeiro. O tema é nervoso: o transporte de dinheiro vivo do litoral para a capital. O preço do táxi aéreo PT-OJI, alugado por R$ 20 mil para fazer o trajeto, não preocupa. “Eu pago, rapaz, mas garanta que dê para chegar e não ser assaltado”, alerta Jaisler Jabour Alvarenga, antes de carregar o avião com uma bolada de R$ 723.800. Jabour não era mais um empresário assustado com o índice de criminalidade fluminense. Era o próprio criminoso em ação: desembarcou no discreto aeroporto de Jacarepaguá, no subúrbio carioca, a bordo de um jipe Cherokee blindado, acompanhado de três outros carros e seis homens armados, escoltando a remessa de mais uma dose de dinheiro escuso para alimentar os vampiros da saúde. Filmado e vigiado a distância pela Polícia Federal, Jabour pagava a propina que, segundo os lobistas, recompensava os serviços de um dos mais graduados funcionários do Ministério da Saúde, Reginaldo Muniz Barreto, dono do cofre de R$ 30 bilhões do Fundo Nacional de Saúde. Na semana passada, o escândalo dos lobistas da indústria farmacêutica, já carimbado como o maior vazamento de dinheiro público da história da República, começou a se transformar numa nova encrenca para o PT e ameaça superar o caso de Santo André. A investigação pegou pelo pé a figura sempre polêmica de todos os partidos e de todos os governos: o tesoureiro. Delúbio Soares, o homem do dinheiro petista, vai ser convocado pelo Ministério Público e pela PF para esclarecer suas ligações com nomes exemplares do vampirismo – a começar pelo próprio Reginaldo.

“O que eu fiz de errado? Nada. Se me convocar como tesoureiro, seria uma suspeição ao partido. Se me chamarem, vou consultar os advogados do PT. Quem analisa contas eleitorais é o TSE e eu fui aprovado com louvor”, reagiu irritado Delúbio. Um dos lobistas presos em Brasília pela PF, Francisco Danúbio Honorato disse à polícia que “qualquer negócio jurídico junto ao governo teria que ser através de Laerte de Arruda Correa Jr.”, mais um dos vampiros enjaulados há duas semanas. “Ouvi comentários de que Laerte teria autorização de Delúbio, tesoureiro do PT, para solicitar dinheiro das empresas farmacêuticas e intermediar interesses dessas empresas junto ao Ministério da Saúde”, atacou Danúbio, que imediatamente pediu para ingressar no Programa de Proteção à Testemunha, por temer ameaças à sua vida e de sua família.

Danúbio foi preso em seu apartamento com R$ 500 mil e US$ 100 mil, mas na hora de falar à polícia não economizou: seu comparsa Jabour, o tenso empresário que escoltava propina em Jacarepaguá, lhe contou que o lobista Laerte o procurou várias vezes dizendo-se pessoa influente no governo Lula. “O dinheiro solicitado seria utilizado para campanhas políticas dos candidatos do PT”, acusou Danúbio. O tesoureiro Delúbio reagiu indignado em Goiânia, na quinta-feira 3: “Isso é descabido. Nunca autorizei nem vou autorizar que alguém faça isso”, disse a ISTOÉ. Mas reconheceu que Laerte levou empresários do setor farmacêutico a contribuir para a campanha de Lula em 2002. “Ele sempre estava lá, com alguém da indústria, mas foi tudo legal”, diz o tesoureiro, que contabiliza R$ 1,5 milhão de doação dos laboratórios no segundo turno da eleição, enquanto não pingava um centavo na bolsinha do concorrente José Serra, curiosamente ex-ministro da Saúde. De fato, num mercado em que laboratórios faturam US$ 20 bilhões por ano, pelo menos quatro empresas envolvidas no escândalo – Biosintética, Novartis, Biolab e Cristália – fizeram gordas contribuições à caravana petista.

Para o Ministério Público, a Polícia e a Justiça Federal, Laerte Correa, ao lado de Jabour e Eduardo Pedrosa (ex-presidente do PL em Brasília), seria o elo político da gangue. Após o depoimento de Danúbio, as autoridades começaram a destrinchar a divisão da propina confessada por Laerte em um diálogo com o lobista Jabour. Laerte diz: “O dia-a-dia é com o Jabour. Daqui para cima, o jogo macro, entro eu na parada e monto as estratégias.” Laerte diz que precisa aumentar o pedágio da corrupção de 6% para 10%: “Eu tenho que mandar seis para um lugar… três têm que ficar com o Eduardo (Pedrosa), um com o Jabour. Porque eu tenho que dar três… Enfim, cê tá entendendo o que eu to falando procê?” Na avaliação do MP, “nesse importante diálogo, Laerte expõe que sua função será o relacionamento superior (político)”, diz o procurador Gustavo Pessanha no ofício em que pediu a volta de Laerte à cadeia. Mais incisivo e afirmativo foi o juiz Clóvis Barbosa Siqueira ao concordar com o segundo trancafiamenteo de Laerte. Para ele, Laerte é o PC do PT. “Grosso modo, a atuação do acusado se assemelha à do falecido Paulo Cesar Farias, que supostamente em nome do governo Fernando Collor extorquia empresas para formação de uma base parlamentar.”

Nos 21 CDs de grampos telefônicos coletados pela PF, não aparece a voz de Reginaldo, presidente do Fundo Nacional de Saúde, mas ele é citado em vários trechos das conversas entre os lobistas – sem contar o jatinho de Jacarepaguá. Reginaldo seria o beneficiário da propina. “Alguém pegou pelo caminho. Esse dinheiro não chegou na minha mão”, desabafou ele numa reunião com líderes petistas pernambucanos na última semana. Reginaldo trocou os ares de Campinas por Recife nos anos 80 para trabalhar no Sindicato de Trabalhadores da Agricultura. Ali ele cultivou sua aproximação com o PT e adubou sua amizade com o hoje ministro da Saúde, Humberto Costa. No governo do prefeito João Paulo (PT) em Recife, Reginaldo era o secretário de Finanças e Costa, seu colega na pasta municipal da Saúde. Todas as pontes de Recife sabem que a aparição de Reginaldo no aparelho petista teve o dedo de Delúbio. “Sou muito amigo dele, é muito competente, mas não influí em sua escolha”, defende-se Delúbio. Apesar disso, a idéia do ministro Costa de importar Reginaldo de Recife para Brasília também tem a digital de Delúbio: “No final de 2002, ele me procurou querendo sair de Recife. E eu disse que ele tinha carta branca para vir para cá”, admite Delúbio, frisando que não indicou Reginaldo.

Retribuição – A atuação de Humberto Costa e Reginaldo na gestão do petista João Paulo deixou muitas dores de cabeça para ambos. No biênio 2001/2002, a prefeitura se transformou num carnaval de contratos sem licitação. O atual ministro Humberto Costa, por exemplo, livrou seus mecenas eleitorais dos incômodos das concorrências públicas. Desta forma, as empresas Líber, de conservação, e Essencial, de vigilância, beliscaram contratos milionários na prefeitura. A primeira ganhou contratos de R$ 3,5 milhões para limpeza de hospitais e a segunda, do deputado estadual André Farias, para fazer vigilância nos postos de saúde, ganhou cinco contratos que superam R$ 1,5 milhão. Elas souberam retribuir e, na campanha para governador em 2002, abriram os cofres para o candidato Humberto Costa, que foi derrotado. Foi no mesmo período, quando Reginaldo tinha a chave do cofre, que ganhou robustez na administração de Recife uma velha conhecida dos petistas País afora: a empresa Enterpa de coleta de lixo. Há três anos a Prefeitura de Recife não faz licitação para coleta de lixo. O mesmo aconteceu em São Paulo, onde a Enterpa, que mudou de nome e agora se chama Qualix, ficou sob a proteção da prefeita Marta Suplicy, não teve que disputar com as concorrentes e foi acusada de formar a máfia do lixo paulista.

O Ministério Público tem informações de que o secretário de Finanças de Recife, Reginaldo Muniz, também participou das negociações da Enterpa em São Paulo. Entre os vôos barulhentos dos vampiros, os investigadores apostam que irão encontrar um dreno para campanhas políticas. Mesmo vampiros veteranos acabaram se confundindo com as novas práticas do poder. O lobista Lourenço Rommel Peixoto, preso na fulminante ação da PF, já havia sido investigado no Esquema PC quando assessorava a pródiga Central de Medicamentos (Ceme) no governo Collor. Dias antes de ser detido, Lourenço – hoje festejado vice-presidente do Jornal de Brasília – conversava com um empreiteiro num elegante jantar na casa do presidente do PL, deputado Valdemar Costa Neto, quando desabafou em tom nostálgico: “No governo FHC, havia um só sujeito na intermediação. Agora, é um bando de gente, pedindo isso e aquilo. Cada um pede um pedaço, a coisa não tem fim.” Assim, companheiro, nem vampiro aguenta.