Erguida às margens do rio Doce, na divisa de Minas Gerais com Espírito Santo, a cidade de Aimorés forma um mosaico pálido de cores. Em seus campos e encostas, o capim raposinho, avermelhado como um rabo de raposa, costuma arder como brasa sob o sol escaldante, que beira os 40 graus. Forrados de minério de ferro, os trens espalham uma poeira negra ao deslizar pelos trilhos que cortam a cidade ao meio, em direção à Companhia Vale do Rio Doce. Aimorés quase não tem sombra nem brisa, muito menos verde. É uma das cidades mineiras mais ameaçadas de virar deserto, tamanho seu grau de degradação. De longe, se observam as ranhuras no solo, como se fossem o sangue escorrendo da terra pisoteada pelo gado.

Assim como os municípios vizinhos de Governador Valadares e Colatina, Aimorés é um grande exportador de brasileiros. Difícil achar, entre seus 22 mil habitantes, quem não tenha um parente ou amigo vivendo legal ou ilegalmente nos EUA ou na Nova Zelândia, o novo destino de quem busca uma oportunidade. Nem sempre foi assim. Há 40 anos, Aimorés era grande produtora de arroz e contava com 60 mil habitantes. O desgaste foi tão grande que dois terços das árvores desapareceram e pouco restou da Mata Atlântica original. Embora sejam os campeões em devastação, Minas Gerais e Paraná não fogem à regra dos demais Estados brasileiros. Da extensa mata, que inclui trechos de floresta densa, manguezais, restingas e araucárias, restaram apenas 7% do que a esquadra de Pedro Álvares Cabral encontrou ao aportar aqui, em 1500.

O ritmo da destruição foi mais acelerado nas últimas décadas, alimentado pelo avanço das cidades e favelas, pela agropecuária sem planejamento e a ocupação de locais que, por lei, deveriam ser cobertos por vegetação permanente. São eles as matas ciliares, que margeiam os cursos d’água, e o topo dos morros, que funcionam como esponja ao filtrar a água das chuvas e manter em equilíbrio a umidade natural do solo. Em uma década, de 1990 a 2000, cerca de 900 mil hectares de verde vieram abaixo nos 3.406 municípios onde há remanescentes da Mata Atlântica. De Norte a Sul do País, foi devastada uma área equivalente a 61.454 estádios do Maracanã. Em alguns pontos, no Nordeste, o que sobrou não chega a 2%. Pior é a situação das florestas de araucária, árvore típica de uma reduzida faixa nos Estados de Santa Catarina e Paraná, dos quais restou menos de 1%.

Terra improdutiva – Salvo raras exceções, a devastação obedece a um ciclo perverso que se processa em etapas e devora um campo de futebol a cada quatro minutos. Com a abertura das estradas, primeiro chegam os madeireiros, em busca de árvores nobres. Depois vêm os carvoeiros, que ateiam fogo para “limpar” o que restou. Em seguida, o plantio varre os terrenos, em geral com monoculturas regadas a agrotóxicos, cujo destino final muitas vezes é o leito dos rios. Para fechar o ciclo vem a pecuária, que estende um tapete de capim na terra para engordar o gado, que pasta até o solo ficar impermeável, e improdutivo. Sem a vegetação para protegê-las, as nascentes de água, quando resistem, tendem a diminuir sua vazão. O resultado é um clima de sertão
numa região antes temperada pelas
chuvas tropicais.

O enredo se repete em outros cantos do Brasil, quase sempre com final previsível, a morte prematura da terra. Para provar que é possível reverter esse quadro, o morador mais ilustre de Aimorés há quatro anos tenta reverter o rumo da história. Com residência fixa em Paris, onde mora com a mulher, a arquiteta Lélia Wanick, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado comprou de sua família a Fazenda Bulcão, onde nasceu, há 60 anos. Ali, fixou o Instituto da Terra, uma ONG que preside e tem entre seus conselheiros o compositor Chico Buarque, o bibliófilo José Mindlin, o escritor Fernando Moraes, o publicitário Washington Olivetto e o líder do MST, João Pedro Stédile. Tião, como o fotógrafo é conhecido, quer reescrever a história de Sebastião Salgado, seu pai, que passou a vida derrubando a mata, assim como os demais fazendeiros da região, cuja economia depende em 95% da pecuária.

“No começo, seu Sebastião não gostou da idéia, mas depois ele até que vinha acompanhar o projeto do Tião”, conta o agrônomo Jaeder Lopes Vieira, gerente ambiental do Projeto Aimorés, cujos objetivos são a recuperação da mata e a educação ambiental dos fazendeiros da vizinhança. Agora, o Instituto Terra pretende repetir os casos de sucesso na redondeza. Tempos atrás, a Fazenda Bulcão não tinha sequer meia dúzia de funcionários para manter seu gado. Hoje, com o reflorestamento, o paisagismo e a construção de suítes para os hóspedes, a fazenda emprega 60 pessoas.

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Pressão ruralista – O projeto se tornou um modelo por duas razões. Uma por ter sido a primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) criada em área degradada na Mata Atlântica. A outra porque seu programa de replantio inspirou mais iniciativas no País. Hoje, metade dos remanescentes da floresta original está em terras particulares. No Brasil, há 500 mil hectares sob proteção em 624 RPPNs. Só na Mata Atlântica são 70 mil hectares protegidos. Nem todos os proprietários podem se dar ao luxo de replicar a experiência da Fazenda Bulcão, que deve recuperar 676 hectares, ao custo proibitivo de US$ 2.200 por hectare, que pode chegar a US$ 6 mil, dependendo do estrago da terra. Até agora, o Instituto Terra plantou 600 mil árvores nativas em um terço da propriedade. Os vizinhos de Salgado estão de olho nos resultados.

Um dos interessados em repetir a experiência são os índios da aldeia krenak, que sofrem com a escassez, a aridez e a pobreza da terra improdutiva. “A Mata Atlântica é um doente terminal com menos de 10% de chance de sobrevivência, que necessita de cuidados urgentes para não morrer”, diz Mário Mantovani, da SOS Mata Atlântica. Ele é um dos líderes da campanha pela aprovação do Projeto de Lei que regulamenta o uso e a conservação da mata, que há 12 anos se arrasta no Congresso por causa da pressão dos ruralistas. “Essa região concentra a maior parte da população brasileira e é a que mais sofre. São 500 anos de exploração. Está na hora de tomar medidas básicas”, reclama o procurador Alexandre Camanho, coordenador de Unidades de Conservação do Ministério Público Federal. Entre elas, o cumprimento da legislação e o aumento da fiscalização.

“Se tivesse mesmo punição para quem não cumpre a lei, no dia seguinte o pessoal ia aparecer aqui perguntando cadê as mudas para a gente plantar”, diz o técnico agrícola Alfredo Toledo. Funcionário da Prefeitura de Aimorés, ele presta consultoria na Fazenda Bulcão e é um exemplo vivo da mudança dos tempos. Durante vários anos, ele trabalhou com o nivelamento de água para irrigação. “Quantas lagoas e córregos a gente drenou nesses anos todos! Hoje estou retornando para a natureza o que prejudiquei um tempão”, declara.

Cinema itinerante – Conservar a Mata Atlântica não é questão de ideologia ou romantismo. Ao lado do Cerrado, a floresta atlântica está entre os 25 pontos críticos para a preservação da vida na Terra. Esses paraísos naturais, onde 75% da vegetação original já virou fumaça, ocupam mísero 1,44% do planeta e abrigam três em cada cinco espécies de animais e plantas. As iniciativas pela preservação mobilizam a comunidade científica, e também instituições de fomento, como o Banco Mundial, a Fundação MacArthur e o Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF). Juntamente com o governo do Japão, o grupo acaba de aprovar 18 projetos prioritários para a conservação da Mata Atlântica. O Programa de Proteção às Espécies deve distribuir US$ 8 milhões, em cinco anos, às iniciativas de ONGs e empresas que apoiem pesquisas e produzam respostas ou subsídios para a recuperação das espécies ameaçadas. Foram contempladas 18 espécies em perigo. Entre elas, duas propostas com anfíbios, três com aves, quatro com mamíferos, uma com invertebrados, uma com peixes e quatro com espécies da flora.

Contribuições como essas são comuns no mundo todo. A mais recente colaboração, de US$ 30 mil, saiu das mãos do ator Robin Williams, que doou o sistema de som, os canhões de luz e as cortinas para o cinema-teatro que será inaugurado em agosto, na Fazenda Bulcão, de Salgado. O projetor de filmes foi um presente da cidade de Valência, na Espanha, mas ainda não chegou. O resultado se vê na prática: Aimorés não tinha uma sala de cinema há 25 anos. Entre os planos do Instituto Terra está o cinema itinerante, que levará a sala de projeção para os rincões áridos do Vale do Rio Doce, na boléia de um caminhão.

“Ninguém vai dizer que a gente não tem que cuidar do mico-leão-dourado, que é um indicador de que o ecossistema natural mudou para sempre, mas nosso negócio é preservar as pessoas”, conta Mantovani, da SOS. Ainda é embrionário o conhecimento sobre a diversidade de espécies existentes no planeta. “Nossa sofisticada ‘sociedade tecnológica’ do século XXI ainda está na Idade das Trevas em termos de entendimento do resto da vida que divide a Terra conosco”, diz o americano Russel Mittermeier, presidente da ONG Conservação Internacional e integrante do conselho do Instituto Terra. “A ciência até agora descreveu 1,5 milhão de espécies de criaturas vivas, animais, plantas e microorganismos”, diz o cientista. Projeções feitas nos últimos anos apontam para cinco milhões a 15 milhões de espécies, que podem eventualmente chegar a um total de 100 milhões. A comunidade acadêmica defende a criação de um sistema de valores econômicos que reconheça a manutenção da vida na Terra, para estimular sua conservação.

Caso contrário, se permitirmos esse “holocausto” biológico, como chama Mittermeier, será a primeira vez na história do planeta que uma única espécie,
o ser humano, coloca em risco milhares de outras. O que sabemos dos cinco grandes episódios de extinção em massa do passado pré-histórico é que leva pelo menos cinco milhões de anos para consertar o estrago. É 20 vezes mais do que o tempo que o ser humano surgiu no planeta. Se não fizermos nada e deixarmos milhares de animais e plantas sumirem da face da Terra nas próximas décadas, o impacto será definitivo para as próximas gerações. Dois alarmes já soaram. O primeiro foi a mudança climática. O outro, a qualidade e a quantidade de água. Chamada de ouro azul, ela será o equivalente, no futuro, ao que o petróleo ainda é: fundamental para as nossas vidas


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