Um mês depois dos atentados de 11 de setembro, o presidente George W. Bush dirigiu-se a milhões de concidadãos ainda perplexos: “Como muitos americanos, eu simplesmente nem acredito no que aconteceu, porque sei o quanto somos bons”, disse ele, com o senso de moralidade ingênua que caracteriza muitos políticos americanos. Mas, por mais que os outros países expressassem sua solidariedade aos americanos pelos ataques terroristas, a idéia de Tio Sam como encarnação do bem não consegue ultrapassar suas fronteiras.

Ainda mais depois das políticas unilaterais adotadas pelo governo Bush, que fizeram ressurgir um sentimento recorrente, que alguns supunham ultrapassado com o fim da guerra fria: o velho antiamericanismo, algo que “vai bem além de falar mal dos EUA”, na frase do escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie. A questão é tão relevante que não passou despercebida pelo establishment estadunidense: na semana passada, a portas fechadas, o Departamento de Estado dos EUA promoveu uma conferência sobre o antiamericanismo, em que cerca de 20 acadêmicos tentaram desvendar a questão para altos funcionários da administração Bush.

Logo depois do discurso do presidente Bush ao Estado da União, em janeiro passado, quando ele cunhou a expressão “Eixo do Mal” (Coréia do Norte, Irã, Iraque e Cuba), manifestações de apoio aos terroristas, principalmente em nações árabes, pipocaram contra Tio Sam. Afinal, Bush dividira o planeta entre os que “estão conosco e os que estão contra nós”. Mas a maior parte dos países aceitou a empreitada contra o terrorismo, condenando qualquer aplauso aos seguidores de Osama Bin Laden e demonstrando solidariedade ao povo americano. Mas, no momento em que o mesmo Bush anunciou a intenção de invadir o Iraque, os europeus recuaram – à exceção do velho aliado, o Reino Unido –, e passaram a acusar os EUA de unilateralismo e de prepotência.

Com o fim da bipolaridade EUA/URSS, o inimigo dos Estados Unidos não tem que necessariamente se tornar o inimigo do resto do Ocidente. Ao analisar o abismo de posições entre o governo americano e os europeus perante um ataque ao Iraque, o sociólogo Francis Fukuyama, da Universidade de John Hopkins, afirmou que, na “visão européia, esse mundo, liberto de ásperos conflitos ideológicos e da competição militar em larga escala, é um mundo que dá espaço substancial ao diálogo e à negociação como caminhos para soluções e disputas”. Fukuyama explica que os americanos estão “propensos a não ver nenhuma fonte de legitimidade democrática maior do que o Estado-nação, enquanto os europeus tendem a acreditar que essa legitimidade democrática flui de uma vontade da comunidade internacional”. Os EUA estão sendo duramente criticados, por exemplo, pela decisão de não assinar o Protocolo de Kyoto, de recusar um tribunal internacional para o julgamento dos membros do al-Qaeda, instituindo uma prisão especial na Baía de Guantánamo (Cuba), por retirar-se da Conferência Mundial sobre o Racismo e ainda pelo incondicional alinhamento de Washington a Israel no conflito do Oriente Médio. “Gostando disso ou não, boa parte do mundo enxerga Israel como o 51º Estado americano, e o entendimento evidente que existe entre Bush e o premiê de Israel, Ariel Sharon, não ajuda em nada a mudar a opinião do mundo. É claro que os atentados suicidas são reprováveis, mas, enquanto os EUA não fizerem um acordo duradouro com os palestinos, o sentimento antiamericano vai continuar a crescer”, profetizou Salman Rushdie.

A política externa, que muda dependendo dos ventos democrático ou republicano, pode ser a causa mais óbvia do antiamericanismo, mas não é a única. Em todo o mundo existe um certo fascínio pelo imaginário de Tio Sam. Com a globalização, a idéia de uma nação rica, poderosa e amplamente democrática provoca ambiguidade: as sociedades autoritárias, como a maioria dos países árabes, são tomadas por sentimentos contraditórios de admiração e ressentimento em relação aos EUA. Estimula-se o desejo das pessoas, frequentemente impossível, de fazer parte de um país assim. Desta maneira, criam-se muitas vezes situações paradoxais. Na China comunista, os jovens revolucionários que foram protestar na Praça da Paz Celestial, em 1989, elegeram a estátua da liberdade como símbolo de suas reivindicações. Já os palestinos, que lutam para recuperar suas terras, queimam bandeiras e símbolos americanos, em protesto contra o apoio de Washington às políticas de Israel.

Para o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, o anti-americanismo não passa de manifestação de “inveja” da posição americana. “Os líderes europeus têm o presidente Bush em alta consideração”, garante o premiê. O fato é que, ao ser eleito, até nos EUA, Bush foi encarado como um caubói ignorante e pretensioso, que fala mal o inglês e conhece muito pouco além da cerca de seu rancho no Texas. Com a reação ao terrorismo, sua popularidade foi à estratosfera e o presidente passou a ser mais respeitado. Poucos criticaram a intervenção dos americanos no Afeganistão para derrubar o regime do Taleban. Mas, agora, Bush volta a ser cobrado pelo unilateralismo.

“O antiamericanismo é cíclico. O que o estimula neste momento são as políticas de Bush em relação ao resto do mundo, restritas e agressivas. Os EUA são uma superpotência, mas hoje agem de maneira imatura”, avaliou a ISTOÉ o professor John Montville, do Centro de Estudos Estratégicos de Washington. “O mundo se tornou refém da guerra contra o terrorismo”, completa Clóvis Brigagão, diretor do Centro de Estudos das Américas da Universidade Cândido Mendes, do Rio. Isso tem reflexos na situação de países como o Brasil, tradicional aliado dos EUA, onde “o aumento do antiamericanismo é em razão do protecionismo adotado por Washington no comércio internacional”.