Osama Bin Laden é um homem de sucesso. O bilionário saudita, tornado líder radical islâmico, tinha como projeto de vida mudar o mundo. Uma ambição, convenha-se, talhada ao fracasso, companheiro da megalomania. Principalmente porque a aspiração envolvia a imposição de obscurantismo religioso sobre liberdades individuais conseguidas a duras penas, em maior ou menor grau, pelo que se entende por civilização. Tudo isso, feito a partir de refúgio asceta no fim de mundo de Cabul, no Afeganistão, ou em cavernas, santuários próprios dos profetas. E, no entanto, conseguiu – pelo menos parcialmente – aquilo que desejava. No dia 11 de setembro de 2001, os discípulos deste autoconfigurado santo guerreiro alteraram de modo indelével não apenas o panorama da cidade de Nova York, como do chamado american way of life e, por tabela, do modo de vida ocidental.

Usando a baixa tecnologia – o emprego de estiletes cortadores de papelão – os 19 obreiros de Osama transformaram três jatos comerciais em mísseis que implodiram as duas torres do World Trade Center, mais quatro prédios vizinhos e tudo mais numa área de 4.466.000 m2, além de parte do Pentágono, em Washington, o centro nervoso militar da maior potência da história, e uma pastagem em Shanksville, no Estado da Pensilvânia, que acabou atingida em lugar da Casa Branca. Morreram 201 passageiros e tripulantes nos aviões, 140 funcionários do Pentágono e 2.819 pessoas em Manhattan. Entre os prejuízos materiais, além dos US$ 50 bilhões em danos em Nova York, cerca de US$ 1 trilhão de negócios paralisados na Bolsa de Valores e o aprofundamento agudo de uma crise econômica globalizada, estão as páginas da Constituição dos Estados Unidos, uma das mais democráticas do planeta, danificada por conjuntos de leis quase marciais impostas a quem quer que esteja no território nacional. Em 1 hora e 42 minutos – tempo que se levou para pulverizar as duas torres –, Bin Laden fez do “sonho americano” um pesadelo sem fim.

Até o dia 10 de setembro de 2001, Alyne Bock nunca tivera insônia. “Hoje o sono vem aos pedaços: há um ano não consigo dormir direito”, disse a ISTOÉ esta bela moça de 32 anos. Ela estava aos pés do memorial aos bombeiros, improvisado em Battery Park, área vizinha do que foi o World Trade Center. Trata-se de uma peregrinação que Alyne faz, de Fort Lee, em Nova Jersey, a Manhattan, uma vez por semana, para tentar, quem sabe, um consolo que lhe permita recuperar o sono contínuo. Deixa com a mãe os dois filhos pequenos, Greg Jr., oito anos, e Brenda, 11 meses. Greg Buck, 32, foi um dos 343 bombeiros mortos nos atentados às torres. “Durante toda a história do corpo de bombeiros profissionais de Nova York, caíram no cumprimento do dever cerca de 700 homens. Somente no dia 11 de setembro, mais da metade disso morreu”, diz o veterano Tom Walters, diretor-assistente do Fire Museum (o museu dos bombeiros da cidade). Ele soube que um avião havia batido no WTC e foi para as ruas do Soho ver o prédio em chamas. “Foi daí que me ocorreu: o que é que eu estou fazendo aqui parado? Eu sou bombeiro, tenho de ir lá ajudar.” Seu rompante quase lhe custa a vida. “Eu estava a 20 metros de onde foram soterrados vários companheiros, inclusive o chefe do corpo de bombeiros. Não morri por milagre”, diz Tom, cujo pai também era bombeiro e morreu num incêndio no Brooklyn há 23 anos. “A gente acaba se conformando com o fato de que o marido corre perigo constante. Quer dizer: ele é bombeiro”, diz a jovem viúva Alyne.

Fim da invulnerabilidade – Desde o ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, os Estados Unidos não eram atacados. Criou-se, deste modo, uma sensação de inviolabilidade no país. Quem ousaria atacar a única potência do mundo? Mas os sinais de que havia algo a mais do que os aviões de carreira no ar eram cada vez mais fortes. Mesmo assim, deixaram de ser captados pelos serviços de inteligência, mergulhados na incompetência burocrática ou pelos eventuais turistas, americanos tranquilos que se aventuravam por terras onde as bandeiras do McDonald’s e da Coca-Cola encobriam com familiaridade o rancor dos nativos. “Hoje em dia estou muito mais ligada no que acontece no mundo. Antes, eu não tinha tanto interesse”, diz Ann Dowd, um ano depois de ter sido entrevistada por ISTOÉ sobre os efeitos do terrorismo em sua família. Na época, logo após o 11 de setembro, Ann e o marido, Larry Arancio, diziam que a vida iria continuar de modo rotineiro, para o casal, os filhos Emily e Liam (agora com quatro e dez anos) e o cão que ocupam o apartamento de classe média na região do Chelsea de Manhattan. “Tenho acompanhado com atenção os fatos internacionais, principalmente no que se refere ao Oriente Médio. O que se passa por lá reflete na vida aqui”, diz Ann. Trata-se de uma mudança prodigiosa de comportamento, que espelha exemplarmente uma tendência generalizada na sociedade.

“O que se ouvia, logo após os atentados, era a voz da incompreensão. Os americanos se perguntavam: ‘Por que eles nos odeiam tanto?’”, disse a ISTOÉ a senadora democrata por Nova York, Hillary Clinton. “Este questionamento foi genuíno e buscava uma explicação pela terrível agressão que o país sofreu”, diz. O venerado historiador Arthur Schlesinger Jr. concorda com a senadora. “Depois do susto, veio a reflexão e a tentativa de reordenar as idéias na cabeça americana. Hoje, a sociedade entende muito melhor as motivações – injustas ou não – do restante do mundo. A nação ganhou maturidade”, diz o professor Schlesinger. Seu diagnóstico pode ser confirmado, de algum modo, pela evolução nas explicações encontradas pelo senso comum da sociedade. Deixou-se de lado a simplória resposta “Eles têm inveja dos Estados Unidos” e assumiu-se que a política externa de Washington nem sempre procura o bem e a prosperidade do restante do planeta.

“A geração pós-11 de setembro terá uma visão de mundo muito mais sofisticada do que a minha”, diz Josephine Hardyn. Ela leva Sara, sua filha bebê, para passear naquela que se transformou na maior atração turística da cidade (3,6 milhões de visitantes, até a semana passada): o gigantesco buraco no marco zero dos atentados do World Trade Center. Parece assustador que os contemporâneos de Sara tenham de viver sob a égide de escombros, em vez da figura imponente da Estátua da Liberdade, que era até há um ano a campeã de visitas. O simbolismo dessa troca de marcos reflete ironicamente as mudanças no cotidiano do cidadão americano de agora. Desde que o presidente George W. Bush declarou guerra ao terrorismo, o governo abriu uma caixa de armas legais que, se por um lado servem para a caçada dos inimigos, por outro também acabam atingindo americanos e aliados.

Com o chamado “Ato Patriótico” – um conjunto de instrumentos legais aprovados pelo Congresso –, o Poder Executivo ganhou liberdade de ação inimagináveis num país com a Constituição democrática mais antiga do mundo. O governo pode espionar quem quer que seja, grampear telefones, revistar imóveis ou pessoas sem ter de apresentar causa provável para este ato, prender estrangeiros e americanos sem lhes dar direito a advogado ou de formalizar acusação, manter confinados em estabelecimentos militares quaisquer suspeitos, xeretar contas bancárias sem aviso, dificultar o trânsito livre dos cidadãos, deportar estrangeiros mais facilmente, censurar a livre expressão e cometer mais um sem-número de arbitrariedades de dar inveja a, digamos, um mulá taleban. Bin Laden conseguiu, com seu crime, implementar na democracia americana um pouco de seu obscurantismo.

Osama é uma espécie de resposta moura ao culto de Dom Sebastião (rei português que desapareceu em 1589 na luta contra forças islâmicas). Ninguém sabe se tanto um quanto outro estão realmente mortos. O presidente Bush prometeu trazer Bin Laden “vivo ou morto”, mas até agora nada. Na verdade, tanto faz: o saudita não tem mais o que perder. Se está morto, há sempre a possibilidade de estar acompanhado de 72 virgens no paraíso muçulmano. E seu fantasma continuará a assombrar os “cruzados”, como ele chamou os ocidentais. Pois vivo, jogou sombras numa das mais invejáveis sociedades do mundo. Seja lá em que condições corpóreas, Osama deve estar cuspindo enxofre numa gargalhada.