A notícia já era esperada por especialistas do setor: empresas multinacionais que investiram no setor de energia, afogadas em dívidas, ameaçam deixar o Brasil. Deu até no The New York Times. Uma já saiu pela porta dos fundos: a americana PPL Corporation foi embora e deixou a Companhia Energética do Maranhão (Cemar) sob intervenção da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) por 180 dias. O pedido de concordata ainda não foi aprovado. Detalhe: a PPL assumiu a empresa praticamente sem dívidas, faturava R$ 340 milhões por mês e quebrou com uma dívida de pouco mais de R$ 800 milhões.

A Enron, protagonista do maior escândalo empresarial dos Estados Unidos, está vendendo seus ativos (inclusive no Brasil) para cobrir o roubo de seus principais executivos e pagar credores. A AES Corporation, também americana, que gera e distribui energia em 20 países, estaria negociando todas as empresas que mantém no País, a começar pela AES Sul Distribuidora Gaúcha de Energia S.A. A condição para voltar atrás na decisão é que seus negócios sejam auto-sustentáveis. A AES é a maior acionista individual da Light, com 13,7%, tem 14,4% do capital da Cemig, é controladora da Eletropaulo (a maior empresa de distribuição de energia da América Latina, atendendo a cerca de 4,6 milhões de unidades consumidoras) desde 2001 e tem 53% do capital total da Cesp-Tietê São Paulo, que abrange dez hidrelétricas. Um colosso.

Ao todo, pelo menos oito empresas de energia no Brasil fazem a mesma ameaça, atribuindo seus prejuízos à seca prolongada, ao racionamento de energia, à regulamentação incerta do setor. São as mesmas empresas que desde meados dos anos 90, quando o governo começou a privatizar o setor elétrico, disputaram a compra de empresas de eletricidade no Brasil, como a histórica Light, sediada na esquina da rua Xavier de Toledo com Viaduto do Chá, bem no centro de São Paulo, onde hoje funciona um shopping center. A Light pertence (95%) à empresa francesa Electricité de France S.A, atende cerca de três milhões de consumidores e também estaria à venda. A Electricidade de Portugal S.A. (EDP) está reestruturando suas unidades brasileiras e diz que quer vender sua participação minoritária na Cerj, a companhia que fornece energia para o Rio de Janeiro (procuradas por ISTOÉ, a AES, a EDP e a EDF não se pronunciaram).

Há duas versões para o que à primeira vista soa como debandada. A primeira é que essas empresas, que acumulam uma dívida monumental em moeda estrangeira, estariam sendo pressionadas por suas matrizes a encontrar compradores em função da retração do setor de energia em todo o mundo. Além disso, no caso específico do Brasil, seus investidores estariam preocupados com o resultado da eleição presidencial em outubro e com a possibilidade, segundo eles, de restrições que atingiriam seus lucros.

A segunda versão – mais verossímel – que ganha força entre especialistas do setor é de que, vítimas de uma administração comprometedora, as empresas usam essa ameaça como parte de um jogo orquestrado para conseguir se beneficiar na revisão dos reajustes tarifários prevista para o ano que vem. Elas querem 34% para garantir a recuperação do capital investido e uma operação saudável; o índice da Aneel é de 22%. “É pura chantagem essa história de ir embora”, diz o deputado Fernando Ferro (PT-PE), autor de um levantamento preliminar sobre as remessas feitas pelas controladoras estrangeiras para o Exterior. Segundo ele, essas empresas, que se dizem quebradas, apenas no primeiro semestre deste ano mandaram para fora US$ 5 bilhões. “É uma situação surrealista”, diz o deputado. “Depois de saquearem os consumidores com o seguro-apagão (o aumento de tarifa provocado pelo apagão), remeterem lucros dessa grandeza e serem financiadas pelo governo, as empresas agora chantageiam, dizendo que vão embora para conseguir mais subsídios.”

“Não é novidade o que está acontecendo”, diz Ildo Sauer, estudioso do setor, Ph.D em engenharia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), coordenador do curso de pós-graduação em energia da USP. “Essas empresas entraram com uma lógica financeira, e não de negócios, fizeram remessas espetaculares para suas matrizes, muitas delas por meio de formas criativas, como consultorias, parcerias, contratos de tecnologia, debêntures, compras de software”, diz Sauer. Também teriam usado e abusado da terceirização, e suspeita-se que muitas das empresas contratadas nesse regime, seriam administradas até pelos próprios diretores das empresas. Os diretores, aliás, não precisavam disso: seus salários, somando bônus e todas as demais regalias, são generosos. “Soltaram os macacos na loja de louça”, diz o professor, lembrando que os investidores vieram para o Brasil para criar mercado para seus equipamentos, mandar dinheiro e, depois, cair fora. O professor-doutor Marco Antônio Saidel, do Centro de Energia em Regulação e Qualidade de Energia (Enerq), da Escola Politécnica da USP, confirma: “Sabe-se que essas empresas remeteram muitos lucros e estão numa situação de caixa difícil.” A crise, diz Saidel, é uma questão de gestão. “Essas empresas financiaram quase 70% de seu investimento em moeda estrangeira e não tinham hedge (proteção contra o risco).”

A explicação de William Hecht, presidente da PPL, para o caso da Cemar, no Maranhão, é bisonha: “Infelizmente, a recusa da revisão de tarifas pela Anatel nos deixou sem escolha, a não ser buscar um comprador.” Segundo o professor Maurício Tolmasquim, coordenador do Centro de Economia Energética e Ambiental da Coppe (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 1991 a 2001 as tarifas residenciais aumentaram 97% em termos reais, fora os reajustes de 2002 e o seguro-apagão que foi cobrado a partir de dezembro de 2001, de cerca de 2% da conta. São dados que ele pesquisou para o livro sobre energia que está escrevendo junto com Ricardo Goribi e Adriana Fiorotti, seus alunos de doutorado. “Não existe espaço para repassar problemas de má gestão das empresas para o consumidor nem para o governo”, diz Tolmasquim. Um Proer para o setor, como o que acaba de socorrer o setor de aviação civil? “Não é aceitável, assim como não é aceitável passar a conta para o consumidor”, diz o professor Saidel. No ano passado, essas empresas já tiveram uma espécie de Proer, através de um socorro de R$ 7,5 bilhões do BNDES, sob a justificativa de repor perdas do racionamento. Foi por causa desse socorro que os consumidores tiveram que engolir o tal seguro-apagão. “Um reajuste para a energia que não foi fornecida”, lembra Saidel.

O argumento recorrente entre essas empresas, de que o Brasil será um mercado interessante assim que a economia retomar o crescimento e a renda aumentar, é balela. “Eles vieram para cá porque as perspectivas do setor na Europa e nos Estados Unidos são pequenas”, diz Tolmasquim. Compraram empresas saneadas (as dívidas foram assumidas pelo governo), de cara cortaram quase 30% do quadro de funcionários (o que também virou lucro) e aceitaram as condições pré-estabelecidas em relação ao reajuste de tarifas.

“Cadê a eficiência anunciada?”, pergunta o professor Sauer. É dele também a comparação: o elefante branco foi mais ágil que a ave de rapina. No caso, o elefante branco é representado pela Cemig, que Itamar Franco não deixou privatizar, e pela Copel, que a população do Paraná fez o papel do governador de Minas, que, mesmo endividadas no Exterior, estão dando lucro e investindo. Os elefantes brancos Cemig e Copel lucraram, respectivamente, R$ 174,7 milhões e R$ 88,4 milhões no primeiro semestre de 2002. O lucro da Cemig no mesmo período de 2001 foi de R$ 14 milhões. Já as aves de rapina…