Em dois séculos e meio de existência, a diplomacia brasileira definiu como dois de seus pilares a solução pacífica de controvérsias e o famoso princípio da não-intervenção, segundo o qual é preciso respeitar a soberania alheia. Se o princípio vale para as relações do Brasil mundo afora, aqui dentro o Itamaraty há tempos não sabe exatamente o que é soberania. Entra governo, sai governo e postos diplomáticos no Exterior são distribuídos a políticos aliados. Nos anos FHC até Jorge Bornhausen ganhou de presente uma embaixada, em Portugal. Entrou Lula e vieram outros embaixadores-políticos, como o petista Tilden Santiago, escalado para Cuba. Agora, essa história começa a mudar, ainda que sob fogo cerrado de diferentes lados. Escolhido pelo presidente Lula para continuar à frente do posto no próximo mandato, o chanceler Celso Amorim ganhou carta branca para afastar das embaixadas os indicados político. E já começou a tirar o plano da manga. Não só vai tirar os diplomatas-improvisados como nomeará para o lugar deles diplomatas de carreira noviços em postos de chefia no Exterior. A reforma de Amorim tem atiçado a ira não só daqueles que perderão seus postos, mas também dos diplomatas veteranos, preteridos no projeto.

Um dos que voltarão ao Brasil é o ex-deputado Paes de Andrade, embaixador em Lisboa desde agosto de 2003. O próprio chanceler foi quem comunicou a decisão. Paes de Andrade não gostou nem um pouco. Tanto que se recusou a cumprir a ordem de Brasília para dar seguimento ao processo de credenciamento (ou agrément, no jargão diplomático) do seu sucessor, o diplomata Celso Marcos Vieira de Sousa. Antes do ex-deputado, Amorim já tinha dado cartão vermelho ao ex-presidente Itamar Franco, nomeado por Lula para comandar o luxuoso Palácio Pamphilli, sede da embaixada brasileira em Roma. As substituições, expressamente autorizadas por Lula, põem fim a um movimento que, no inícío do primeiro mandato, interessava ao próprio presidente. Assim que chegou ao Planalto, Lula pediu que fossem reservados alguns postos para serem distribuídos a políticos aliados, como foi o caso de Itamar, que mais tarde voltaria a fazer oposição ao petista.

Ao mesmo tempo, o chanceler está mexendo em alguns outros postos de alta relevância. É o caso da embaixada em Washington. Sai o veterano diplomata Roberto Abdenur e entra Antonio de Aguiar Patriota, promovido a embaixador há apenas três anos. Ele é tido como um diplomata erudito e tem lugar entre os melhores analistas de relações internacionais do Itamaraty, mas nunca ocupou nenhum posto de chefia no Exterior. Mesmo assim, Amorim decidiu alçá-lo direto ao mais importante cargo da diplomacia brasileira. Internamente, a reação dos veteranos é grande. O normal seria colocar nesses postos-chave as velhas raposas. Mas é justamente aí que está a explicação para a decisão do chanceler. Nomeando a safra mais jovem, fica mais fácil manter o comando centralizado em Brasília. Amorim, que nos primeiros quatro anos do governo Lula trabalhou sob a sombra de Marco Aurélio Garcia, assessor do presidente para Assuntos Internacionais, aos poucos vai impondo o seu próprio princípio da não-intervenção.