Ao deixar o Brasil em 1664, o ilustrado conde João Maurício de Nassau-Siegen levou em sua bagagem um tesouro artístico e científico que encheu os olhos sedentos de exotismo dos europeus. Além de peças indígenas e mobiliário, a coleção Brasiliana que formou em sete anos de governo reunia 24 esplêndidas telas, documentando tipos étnicos brasileiros e as exuberantes flora e fauna tropicais, às quais somavam-se dois retratos seus. Todos os óleos, entre eles Homem mestiço e Bananas e goiabas, tinham a assinatura do pintor e desenhista Albert Eckhout, um dos seis artistas que integravam a comitiva holandesa. Os retratos se perderam, um num incêndio, o outro em circunstâncias desconhecidas. Mas o valioso registro do País sobreviveu e está guardado com todo o rigor técnico no Departamento de Etnografia do Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague. A partir da quinta-feira 12, este acervo inestimável poderá ser visto pela primeira vez em 358 anos na cidade onde foram realizados: Recife, a Mauritiópolis de Nassau, no Instituto Ricardo Brennand. Em dezembro, a mostra Albert Eckhout volta ao Brasil 1644-2002 ocupará o Conjunto Cultural da Caixa, em Brasília, encerrando sua itinerância na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, no início de 2003.

Albert Eckhout já foi exposto quatro vezes no Brasil – em 1968, no Rio de Janeiro, e na década passada, em São Paulo. Mas esta é a primeira vez que toda a série do Museu Nacional da Dinamarca viaja ao exterior. Nenhum país até hoje foi premiado com tal privilégio, já que devido à fragilidade das obras o museu não costuma nem exibir a coleção Eckhout na íntegra. O que dizer emprestá-la? Todos os méritos devem ser atribuídos ao colecionador e publicitário dinamarquês Jens Olesen, presidente da agência McCann-Erickson Brasil, também responsável pelas negociações anteriores. “É um empréstimo que nunca havia acontecido e, provavelmente, não vai acontecer mais”, garante Olesen, que há oito anos está envolvido no evento, orçado em US$ 2,5 milhões. Para convencer os técnicos dinamarqueses, ele fez 40 viagens à Dinamarca e acompanhou três delegações de avaliação no Recife e em Brasília. “Foi uma espécie de missão impossível, um sonho enfim realizado.”

Uma pergunta, no entanto, surge de imediato. Por que estas obras se encontram na Dinamarca e não na Holanda? É que Maurício de Nassau – que nasceu em Dillenburgo, Alemanha – em 1654 resolveu presenteá-las a um parente próximo, Frederico III, rei da Dinamarca. Entre as 24 telas, as mais importantes são os retratos étnicos, realizados entre 1641 e 1643. Medindo em média quase 3m de altura por 1,5m de largura, os oito óleos formam um mapeamento detalhista da época. Em Homem mestiço, por exemplo, vê-se uma plantação de cana-de-açúcar, o mais importante cultivo de então. Como curiosidade, a figura empunha um arcabuz com o cano um terço menor. Segundo o pesquisador inglês J.P. Whitehead, a diminuição da arma se deu unicamente por razões estéticas. Existe mais uma série de ensinamentos a tirar dos magníficos retratos, realizados com total apuro técnico, de acordo com os preceitos renascentistas. A comparação entre Mulher tapuia – mostrando um tipo oriundo de um grupo mais predador, que vivia no interior do País – e Mulher tupinambá, habitante do litoral e dedicada a práticas do cultivo da mandioca e do milho, diz bastante sobre o projeto colonizador holandês. Ao retratar uma tapuia como antropófaga, tendo ao fundo a tribo preparada para o ataque (na tela, um detalhe entre as pernas), e uma tupi dócil e doméstica diante das plantações de uma casa colonial, a mensagem de Eckhout é clara: a civilização está com os holandeses.

O que tem ocupado os críticos de arte, porém, é a flagrante modernidade do artista, patente nas 12 naturezas-mortas da mostra, seis delas praticamente inéditas no Brasil, como Abacaxi e mamão. Outro grupo desconhecido do público brasileiro é o retrato de três enviados africanos, trajados à maneira européia, entre eles Servo com presa, que teriam visitado Maurício de Nassau em 1643. Mas são as naturezas-mortas que impressionam pela luz e acabamento técnico. Emolduradas por um céu carregado, prática comum da pintura holandesa da época, estão entre as primeiras obras do gênero feitas ao ar livre. O crítico José Roberto Teixeira Leite é um dos que conferem importância a Eckhout em detrimento da superioridade consensual do paisagista Frans Post, outro nobre integrante da comitiva holandesa. “A arte de Eckhout parece-nos muito mais instigante, mais construída e tematicamente mais variada, uma vez que abarca de um lado os tipos étnicos de indígenas, negros e mulatos e de outro as extraordinárias naturezas-mortas de sabor algo caravaggesco”, diz o crítico.

A grandiosidade do artista só esbarra numa incógnita. Até hoje pouco se sabe da sua biografia. Eckhout não deixou nenhum auto-retrato, e sobre ele pairam dúvidas até em relação à cidade natal – provavelmente Groningen, nos Países Baixos – e às datas de nascimento (cerca de 1610) e morte (cerca de 1665). Em compensação, sabe-se muito sobre sua obra. Além dos óleos repousados na Dinamarca, 800 desenhos de pássaros, répteis, crustáceos e peixes estão depositados na Biblioteca de Cracóvia, na Polônia. Como curiosidade, no verso de um deles pode-se ler: “Este peixe é gostoso de comer.” Além de pintor de mão cheia, Eckhout também devia ser bom de garfo.