Talvez nunca se descubram as impressões digitais da Síria no corpo despedaçado do ex-primeiro-ministro libanês Rafik Hariri, 60 anos, morto na segunda-feira 14. Hariri foi vítima de um violento atentado à bomba perpetrado com quase 400 quilos de explosivos, que fizeram uma cratera de quatro metros de profundidade na rua do histórico Hotel Saint George, em Beirute, capital do Líbano. O ataque foi reivindicado por uma desconhecida Jihad na Síria. Além de Hariri, 16 pessoas foram mortas e 135 ficaram feridas. Talvez o ditador sírio Bashar Assad, que classificou o atentado como “um ato terrorista horrível”, nunca seja levado ao banco dos réus como responsável pelo episódio. Hariri, antigo aliado de Assad, exigia a retirada das 14 mil tropas sírias do Líbano e abandonou seu cargo de primeiro-ministro em outubro passado justamente por discordar das políticas do presidente libanês, Émile Lahoud, um aliado canino dos sírios. A responsabilidade pelo assassinato do bilionário que tirou o arrasado Líbano das cinzas depois de 15 anos de guerra civil (1975-1990) pode até recair sobre terroristas ligados à rede Al-Qaeda ou outros de seus tantos inimigos. Mas mais importante do que a descoberta do assassino, contudo, foi o que o assassinato provocou. O alvo era a estabilidade do Líbano, e o desaparecimento de Hariri representa não apenas uma virada na Síria, mas também no conturbado Oriente Médio.

O ataque contra o “Sr. Líbano”, como era chamado o mais popular político do país, fez com que os libaneses se revoltassem ainda mais contra a presença síria, que teve início durante a guerra civil. São muitos os interessados em desestabilizar a região e também muitos os que querem a saída das tropas sírias, mas poucos teriam condições de realizar um atentado de tal magnitude. E mal o corpo de Hariri esfriava e já aumentavam as pressões nacionais e internacionais para que a Síria acabe com sua ingerência em Beirute e deixe de apoiar terroristas no Sul do Líbano, entre eles o grupo Hizbolá, que realiza ataques contra Israel.

Pressão dos EUA – Na quinta-feira 17, o presidente George W. Bush afirmou que as relações entre Síria e Estados Unidos “não estão caminhando”. Além da completa retirada dos soldados sírios do Líbano, Washington exige que Assad não utilize seu território como abrigo para terroristas internacionais, inclusive para os aliados de Saddam Hussein do Partido Baath – o mesmo no poder em Damasco –, que o governo americano acusa de “causar devastação e matar gente inocente” no Iraque. Os Estados Unidos vêm afirmando que o regime sírio permite a entrada de terroristas no Iraque através de suas fronteiras e estuda a possibilidade de sanções contra o país, caso não se retire do Líbano. “A Síria não tem nenhum interesse em permanecer no Líbano para sempre e há discussões em curso sobre a retirada. Nossas forças ajudaram a estancar a guerra civil por lá e agora estamos trabalhando duro para que o país seja estável e seguro”, disse o editorial do jornal governista Syrian Times. A estabilidade na região também é importante para o governo israelense, que está em processo de retirada da Faixa de Gaza. Tanto os Estados Unidos como os países europeus estão pedindo uma investigação internacional para o caso.

No funeral de Hariri, ao qual compareceu o presidente francês Jacques Chirac, amigo pessoal do ex-premiê, mais de 200 mil pessoas protestavam contra a Síria. A França, que possui laços históricos com o Líbano – uma colônia francesa até a independência, em 1943 –, ajudou a gerenciar a dívida interna do país de US$ 41 bilhões e a arquitetar a aprovação, em setembro último, da resolução 1559 da ONU, que exige a saída de “todas as tropas estrangeiras do Líbano”. Além de o Líbano estar sendo monitorado pelas Nações Unidas, o país terá eleições em maio. “A Síria tem que retirar suas tropas antes das eleições para que possamos garantir o processo democrático no país”, afirmou a ISTOÉ Farid El Khazen, professor da Lebanese American University. Apesar da instabilidade provocada pelo terrorismo, o analista descarta uma nova guerra civil. Ele acredita que alguns atentados com carros-bomba ainda poderão acontecer nesse período pré-eleitoral, mas não a ponto de impedir o pleito.

Reconstrução – Uma das façanhas atribuídas ao ex-premiê (que governou o Líbano entre 1992 e 1998, para retornar em 2000) era sua capacidade de aglutinar sunitas, xiitas, cristãos maronitas e drusos, depois de décadas de ódio étnico. Hariri também representava o libanês originário de uma família humilde que fez fortuna e reergueu o país. Reconstruiu Beirute, chamada antes da guerra “a Paris do Mediterrâneo”, com investimentos de US$ 12 bilhões. Desses, US$ 450 milhões saíram de seu próprio bolso. O construtor, que começou erguendo palácios na Arábia Saudita, era dono das principais emissoras de tevê árabes no Líbano e seu patrimônio, avaliado em US$ 4 bilhões, inclui um condomínio no Brasil (leia quadro). Durante seu governo, Hariri deixou de lado as empresas, assumidas por seus filhos mais velhos. A oposição o acusava de desvio de verbas. Segundo o analista Khazen, os filhos serão os sucessores de Hariri na política. “Hariri é insubstituível”, disse a ISTOÉ o analista Burhan Ghalioun, diretor do Centro de Estudos Contemporâneos do Oriente Médio na Universidade de Sorbonne. Mas ele acredita que os libaneses estão “amadurecidos para eleger um governo moderado, que receba legitimidade internacional”. Para ele, “o Líbano está a caminho de uma nova base democrática”. Oxalá ele esteja certo, porque já é razoável a dor de cabeça causada pelo Iraque à comunidade internacional. Imagine então se o conflito faiscar para países como o Líbano.