Hélcio Nagamine

Terceira via

O sociólogo, professor e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está de muito bom humor. E tem boas razões para isso. Depois de oito anos no principal cargo político do País, ele realiza um sonho: conseguiu congregar em um instituto sem fins lucrativos todo o acervo documental de sua vida, desde os anos como professor na Universidade de São Paulo (USP), passando pela vida política como senador, ministro das Relações Exteriores e da Fazenda, até os anos como presidente da República. Pego de surpresa para esta entrevista exclusiva com ISTOÉ na sede do instituto, às vésperas do seminário com o ex-presidente americano Bill Clinton, FHC até brincou. “Mas justo hoje que eu estou sem gravata?” Sem gravata, mas elegante em uma combinação marrom ton-sur-ton. A seguir, alguns trechos desta conversa descontraída em que ele avalia os prós e os contras da era FHC e do governo Lula.

ISTOÉ – Esse instituto é um sonho antigo do sr. Como é ter esse sonho realizado?
Fernando Henrique Cardoso –
É muito bom. Aqui tem uma imensa documentação, que todos os presidentes recebem quando deixam a Presidência. Como eu fui presidente duas vezes, tenho muita coisa guardada. Espero também que as pessoas que trabalharam no meu governo possam mandar documentos sobre
esse período, para que se tenha uma documentação mais bem organizada.
Hoje, com esses recursos de digitalização e conservação, pudemos montar um arquivo mais atualizado. Mas uma parte deste arquivo não está aqui. São as gravações que eu fazia quando estive na Presidência. Isso vai ficar interditado por uns bons anos, porque é uma coisa muito pessoal. Eu faço referências a fatos e a pessoas de maneira muito aberta, muito franca e eu mesmo nunca mais voltei a olhar esse material.

ISTOÉ – Essas gravações estão com o sr.?
FHC –
Estão comigo. No futuro, vão ficar aqui também. Mas com interdição de acesso. Eu vou usar em partes, já que estou escrevendo um livro (com título provisório A arte da política, sobre o começo do processo de democratização do Brasil até o final do governo FHC). Já tenho mais de 100 páginas Mas, por enquanto, nem cheguei às fitas. Acredito que terei de fazer mais de um livro para poder dizer as coisas. Porque este não é apenas de memórias. Portanto, mais adiante, usarei um pouco dessa documentação. Nesse sentido, isso aqui realmente é um sonho.

ISTOÉ – Ao analisar seu governo, quais as frustrações que ficaram?
FHC –
Sempre há uma porção de frustrações. Quando se vê a história, olhando para trás, é fácil dizer “ah, eu faria diferente!” Ou: “Eu não faria isso, faria aquilo.” Como historiador, é preciso entender a época. Não adianta dizer o que eu faria hoje. O que foi feito naquele período foi feito. É preciso entender as alternativas que haviam naquele momento. Eu ouvi muitas vezes: “Ah, por que o governo não mudou o câmbio antes?” Porque nós todos tínhamos medo de que voltasse a inflação. Hoje se fala que a estabilidade foi um “populismo cambial”. Imagina se, naquela altura, alguém pensava assim! Isso é coisa de gente que não sabe como se ganha eleição. A eleição de 1998 eu ganhei no primeiro turno e nós estávamos numa péssima situação. Estávamos em plena crise. A crise da Rússia estourando, desemprego. O debate era quem seria capaz de segurar a crise; não se iria haver crise ou não. E eu ganhei. Eu poderia ter perdido, mas ganhei. Então, a coisa do câmbio não tinha nada a ver com isso. Foi um momento muito difícil.

ISTOÉ – Mas o sr. não tem nenhuma frustração de sua gestão?
FHC –
Visto de hoje, sem dúvida. Por que não começamos o programa de
proteção social antes? Poderia ter começado. Ao menos teoricamente. Agora,
uma frustração no plano pessoal é demitir um amigo. E você demite sabendo que o cara é bom, que o cara é inocente, mas que a situação política não te permite mais mantê-lo. Com o Clóvis Carvalho (ex-ministro do Desenvolvimento), por exemplo. E não foi só com o Clóvis. Eu tive de tirar, em um dado momento, o Celso Lafer, que depois voltou. São pessoas de minha relação íntima, pessoal, da minha vida inteira. A situação política obriga você a mudar e você faz das tripas coração. Enfim, são essas as coisas que mais tocam.

ISTOÉ – O sr. acredita que seu primeiro mandato foi melhor que o segundo?
FHC –
Com a crise do salário mínimo que enfrentei no primeiro governo? O Congresso dobrou o salário mínimo e eu vetei. Em seguida, em maio, veio
a greve da Petrobras, que durou um mês. Eu tive que botar tanque na rua.
E depois falam dos 100 dias de graça. Pode ser para o Lula porque, para mim, não teve refresco, não. E a crise do México estourou em 1994. Ou seja, comecei a governar com uma crise internacional, tendo que enfrentar em casa o aumento do salário mínimo e a Petrobras. O primeiro mandato ainda terminou com a crise da Rússia. Depois, falam que não deveria ter havido o segundo mandato, porque o primeiro mandato foi fácil. Quem fala isso não sabe das coisas. O segundo mandato também foi difícil desde o começo. Nós fizemos a lei de responsabilidade fiscal e o plano de proteção social. Então, é muito difícil dizer se teve mais aqui ou menos ali. Governar tem sempre essas dificuldades. Mas não adianta eu julgar o que eu fiz. Quem vai julgar isso é a história.

Hélcio Nagamine

O instituto de FHC abriga uma biblioteca de dez mil livros e um auditório para seminários e palestras

ISTOÉ – A criação de um instituto como esse pode estimular uma revisão histórica de seu governo?
FHC –
Não necessariamente. Saiu um livro recente do José Guilherme Reis, Fábio Giambiagi e André Urani (Reformas do Brasil, balanço e agenda) que faz uma primeira avaliação, mais documentada do governo. O revisionismo total levará mais tempo. O que o governante fez também depende do que os seguintes venham a fazer. O Gilberto Gil deu uma declaração surpreendente que saiu no jornal O Globo, que eu não concordo… Ele disse que o governo Lula jamais poderá ser melhor do que foi o governo FHC. Gil afirmou que o governo tinha de ser de continuidade e é verdade: ele colaborou com o meu governo e está colaborando agora. Também
o Cristovam Buarque (ex-ministro da Educação de Lula) tinha essa idéia, de criar essa continuidade.

ISTOÉ – E o sr. vê continuidade do seu governo?
FHC –
Não, eu não estou vendo. Mas o fato é que Gil disse isso, o que eu não acho certo. Por que não poderia ser melhor? Mas, enfim, se você é seguido por um governo que foi uma coisa espetacular, o seu governo diminui. Se você é seguido por um governo que não faz o que se deve fazer, seu governo aumenta. Isso não depende só de você, depende também de quem vem depois. A história é uma coisa complicada, e julgamento é sempre complicado.

ISTOÉ – O sr. acredita que a equipe do governo Lula está destoando?
FHC –
O governo ainda está começando (risos) … Não sei, eu ainda estou esperando o governo começar. Mas eu estou esperando com muito boa vontade e simpatia, para ver o que vai acontecer.

ISTOÉ – Como o sr. vê a entrada do José Serra na corrida municipal no momento em que surgiram denúncias contra o ex-prefeito Paulo Maluf?
FHC –
Não falo sobre política…

ISTOÉ – Nem sobre as denúncias?
FHC –
Nada.