Carlos Magno

Márcia usa poupança para pagar dívidas: carro na garagem

Exemplares representativos de um país marcado pelas diferenças regionais e disparidades sociais, as famílias da promotora de eventos Márcia Brito, 52 anos, moradora do Rio de Janeiro, e do ambulante cearense Francisco Antônio da Silva, 29 anos, residente na cidade de Maranguape, têm orçamentos bem diferentes. A começar pelos ganhos: Márcia tem renda familiar mensal que gira em torno de R$ 3 mil, enquanto a de Francisco não passa de R$ 160. Apesar do contraste, um desagradável traço de união os coloca em pé de igualdade. Tanto a família carioca quanto a cearense estão endividadas. “No último mês fui obrigada a tirar dinheiro de aplicações para pagar o cheque especial”, lamenta Márcia. As dívidas de Francisco são de natureza diferente. “O mais comum é fechar o mês devendo à mercearia. A gente vai empurrando com a barriga”, resigna-se ele. Nada menos que 85% das famílias brasileiras estão nessa mesma incômoda situação de ter que equilibrar – quase sempre através de endividamento – gastos mensais maiores do que os rendimentos. A conclusão é da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgada pelo IBGE na quarta-feira 19, um levantamento que não era feito há 30 anos. Ao mesmo tempo que revela semelhanças entre famílias tão diferentes, o estudo traduz em novos números o abismo que separa o campo da cidade e também as populações de alta e baixa renda.

Os gastos médios das famílias brasileiras chegam a R$ 1.778,03, praticamente o rendimento médio mensal, que é de R$ 1.789,66. Nas 41 milhões de unidades familiares em que a renda vai até R$ 3 mil, as despesas são maiores do que os ganhos. Isso perfaz 85% da população, percentual igual ao de famílias que declararam ter dificuldades para chegar ao fim do mês com os seus rendimentos – numa pesquisa subjetiva que, pela primeira vez, o IBGE incluiu em seu trabalho. “Esse tipo de informação mostra que o padrão de concentração de renda nacional se mantém”, avalia Eduardo Pereira Nunes, presidente do instituto. O levantamento foi realizado entre o segundo semestre de 2002 e o primeiro de 2003, com a visita dos pesquisadores a 48 mil famílias, ao custo de R$ 6 milhões. Uma das maiores diferenças entre a pesquisa realizada há três décadas e a atual é o aumento da fatia de gastos permanentes com alimentação, habitação, saúde, impostos e obrigações trabalhistas. Em 1974, essas despesas fixas representavam 79,86% do orçamento e hoje chegam a 93,26%. “O valor que as famílias dispõem para gastar em investimentos como poupança e aquisição de ativos não passa de um terço do que era 30 anos atrás”, diz Nunes.

Corte de gastos – Para enfrentar os tempos bicudos, a bibliotecária paulista Ivete dos Anjos, 45 anos, cortou uma de suas duas linhas telefônicas, o acesso à internet, e o telefone que restou está programado para realizar apenas ligações locais. “Estou sempre no vermelho. Da última vez que fui ao supermercado, deixei um cheque para 40 dias”, revela. “O que mais pesa no orçamento são alimentação, condução, água, luz, telefone e farmácia.” Márcia Brito, que é separada e tem um casal de filhos de 18 e 23 anos, teve de fazer adaptações radicais nos hábitos de consumo da família. No começo, cortou supérfluos, como viagens ao
Exterior e a compra de vinhos de qualidade. Hoje, as mudanças são de outro tipo. “Cancelei meu plano de saúde e mantive apenas o dos meus filhos. Evito sair com o carro para economizar no combustível”, explica ela, que abriu uma empresa de marketing promocional em 1976 e chegou a empregar 30 funcionários. Está prestes a fechar. Os ajustes no orçamento alteraram, inclusive, hábitos alimentares.
“Há três anos comíamos filé mignon praticamente todos os dias. Agora, esse item está excluído”, comenta.

A diminuição no consumo de alimentos é uma providência tomada por vários brasileiros. Uma comparação entre a POF de 1975 e a atual revela que a quantidade de carne bovina per capita por ano está em linha descendente. “Gostaria de comer carne pelo menos uma vez por semana”, sonha o cearense Francisco Antônio da Silva, que está entre os 46,7% dos brasileiros que declararam não comer a quantidade suficiente de alimentos. Com os ganhos de ambulante, Francisco sustenta a mulher e duas filhas, de 15 e sete anos, e lastima que a família não possa consumir mais leite. “Gostaria de comprar um litro por dia, mas só posso comprar um por semana, que vai apenas para a menina de sete anos”, explica.