Fotos: Leopoldo Silva

Renan virou votos e é um forte candidato do PMDB à presidência
do Senado. João Paulo conversa
com Inocêncio e Luizinho (à esq.): traição e mágoa

No primeiro ensaio para executar uma peça eminentemente política, a base do governo mostrou que está mais para bandinha de coreto do interior do que para filarmônica. Quando o painel de votação da Câmara foi aberto, às 23h12 da quarta-feira 19, a desafinação dos instrumentos palacianos ficou evidente. O deputado João Paulo Cunha (PT-SP) formou um duo com o senador José Sarney (PMDB-AP) para prorrogação dos mandatos nas presidências da Câmara e do Senado. Foram derrotados pela ambiguidade do presidente Lula, do governo como um todo e por uma forte atuação do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que ambiciona ser o novo presidente do Senado. A votação dividiu os partidos, ameaça ecoar na decisão sobre o valor do salário mínimo e, nos próximos meses, transformará o Senado em palco de uma ópera fratricida opondo Renan e Sarney, que, sentindo-se traído, não medirá forças para se vingar e derrubar o líder do PMDB. Mantendo a liturgia do cargo que ainda exerce, Sarney nega qualquer espírito de vingança, mas seus aliados prevêem que ele, primeiro, tentará vetar a escolha de Renan dentro da bancada do seu partido. Depois, Sarney poderá juntar pedaços do PMDB, PFL e PSDB para lançar um nome alternativo em plenário. O mais cotado é o oposicionista Tasso Jereissati (PSDB-CE). O nome do tucano agride os ouvidos dos regentes governistas, que nada fizeram para impedir o barulho desnecessário. “Colocar isso em pauta já foi um equívoco”, resumiu o ex-ministro de Lula Miro Teixeira (PPS-RJ), que votou contra a reeleição.

Por ora, o governo quer baixar o volume da crise, empurrando com a barriga o debate sobre os novos presidentes do Congresso e adiando a discussão do salário mínimo por 15 dias. O presidente Lula convocou os aliados na quinta-feira 20, pedindo para adiar a votação do mínimo até afinar a base. “A recomendação do presidente é esperar o momento de serenidade. Seria melhor dissipar esse clima da Câmara”, anunciou o líder do PT, Arlindo Chinaglia (SP), informando que a votação será após o retorno de Lula da China.

Lula está certo. Ressentido, o presidente João Paulo terá sua influência reduzida após a derrota e antecipa que a votação será complicada: “O mínimo não está ao alcance da gente. Vinte petistas são contra, o PCdoB é contra, o PMDB quer R$ 300 e PFL e PSDB já fecharam nos R$ 275. Temos dificuldade em aprovar os R$ 260.” O presidente Lula garante que não há espaço para aumento e mandou um recado ao PMDB. Na reunião com os líderes, fez questão de registrar, dois tons acima, seu duplo descontentamento com os ministros do PMDB: na atuação contra João Paulo e na definição do mínimo. “Vou perguntar ao Amir Lando (Previdência) e ao Eunício Oliveira (Comunicações) onde eles vão arrumar recursos para pagar o mínimo de R$ 300 defendido pelo PMDB”, reclamou. Lula ligou para os dois no dia da votação para se queixar. Ambos negaram que trabalhavam em prol de Renan. O que o presidente não vai conseguir abafar é a briga dentro do PT para suceder João Paulo. A idéia de colocar o ministro José Dirceu na presidência da Câmara é recorrente. Também são candidatos os petistas Arlindo Chinaglia (SP), Luís Eduardo Greenhalgh (SP), Sigmaringa Seixas (DF) e Paulo Delgado (MG), que acusou João Paulo e o PT de casuístas. “Esse não será de jeito nenhum”, desabafou o presidente da Câmara a um amigo, sem esconder sua irritação com o desafeto. Mas a bronca principal de João Paulo é com Lula e o governo.

João Paulo foi estimulado pelo Planalto a lutar pela reeleição depois de garantir a Lula que aprovaria facilmente a tese na Câmara. Chegou a anunciar, publicamente, que ele e Sarney tinham o apoio de Lula para ficar mais dois anos com a batuta na mão. Desmentido, partiu para um vôo solo, amparado pelo chefe da Casa Civil, José Dirceu (PT-SP). “Me deixaram na chuva”, reclamou João Paulo, referindo-se ao presidente. Na última semana, João Paulo fez um trabalho diário de corpo a corpo, pediu votos e prometeu recompensas. Vários aliados sugeriram adiar a votação. “O ambiente não está bom”, aconselhou o líder do PL, Sandro Mabel (GO), antevendo uma difícil batalha. “Não recuo. Posso até perder, mas vamos votar”, respondeu. João Paulo buscou deputados escondidos em casa, resgatou outros já embarcados em aviões para seus Estados e conseguiu virar cerca de 60 votos, minutos antes da votação. Pouco antes de começar a votação, João Paulo reuniu seus principais operadores. Abriram um vinho, refizeram os cálculos e, no limite, somaram 307 votos – um a menos que o mínimo necessário. Diante da iminência da derrota, a assessoria já tinha redigido um pedido para adiar a votação. “Em jogo de campeonato só se abre o painel com mais de 480 deputados”, recomendou Luís Eduardo Greenhalgh (PT-SP). “Não tem jeito. Eu não tenho para onde crescer. Pedi para abrir quando chegasse a 440 votos. Quem foi embora fez uma opção política contra a reeleição”, disse João Paulo, jogando a toalha. Votaram pela reeleição da dupla Sarney/João Paulo 303 deputados, 127 ficaram contra e nove se abstiveram. “O PMDB me derrotou. O presidente poderia ter interferido. Ele disse que não iria atuar, mas os ministros do PMDB, o presidente do INSS (Carlos Bezerra), o dos Correios (João Henrique) e o da Transpetro (Sérgio Machado) atuaram contra a reeleição. Eu não busquei os ministros do PT porque o presidente desautorizou”, queixou-se João Paulo a seus amigos na quinta-feira 20.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

O principal adversário da reeleição, Renan Calheiros, montou seu quartel-general na sala da liderança, a poucos metros do plenário da Câmara, e arriscou tudo. De lá, repetindo que a reeleição era casuísmo, em dois dias disparou mais de 500 telefonemas para deputados, governadores do PMDB, ministros do partido – Eunício Oliveira (Comunicações) e Amir Lando (Previdência) –, para o ex-governador Anthony Garotinho (PMDB-RJ), e convocou seus aliados para tirar votos no imprevisível baixo clero da Câmara. “Nós vamos ganhar essa”, repetia ao final de cada ligação. Traçou uma contabilidade de metas para subtrair apoios em todos os partidos e evitar que os adeptos da reeleição atingissem os 308 votos. Na operação com Garotinho, sem contar os votos do Rio de Janeiro, Renan conseguiu ainda que o secretário de Segurança fizesse a ponte com o presidente do PDT, Leonel Brizola, que mudou votos favoráveis à reeleição em seu partido. A estratégia deu certo. Renan conquistou a maioria dos votos do PMDB e beliscou apoios decisivos em todos os partidos. Além das ausências – cinco deputados petistas e 16 aliados de João Paulo em viagens autorizadas por ele próprio –, Renan conquistou 54 votos entre os mais fiéis aliados da tese da reeleição. O deputado João Paulo acusou o ministro Aldo Rebelo (PCdoB-SP), da Coordenação Política, de trabalhar pelo amigo Renan. Na noite da quarta-feira 19, o líder do PCdoB, Renildo Calheiros, irmão de Renan, ligou para avisar que todos os comunistas fariam coro contra a reeleição, mas avisou que estava sendo pressionado por João Paulo, que queria pelo menos três votos do PCdoB. Aberto o painel, apenas dois votos do PCdoB foram pró-João Paulo. “O jogo no campo adversário (Câmara) era mais difícil. Eu estava preparado para o jogo de volta, no Senado. Mas foi uma vitória sobre o casuísmo”, comemorou Renan num churrasco que varou a madrugada da quinta-feira 20. Claro que, se o governo tivesse entrado em cena, João Paulo levaria fácil. Mas todos desconfiam que o Planalto optou pelo mal menor, matando a reeleição no primeiro ato, sacrificando um aliado, antes de a briga chegar ao Senado com consequências imprevisíveis.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias