Nas últimas semanas, imagens vindas do Iraque revelaram às crianças o que é um conflito de verdade. Na quinta-feira 10, a rede Record mostrou às seis horas da tarde cenas chocantes de um policial prestes a se suicidar em frente ao palácio do governo de São Paulo. O noticiário televisivo é recheado de casos de violência, como os frequentes ataques de narcotraficantes no Rio de Janeiro. As inserções e chamadas para fatos como esses pipocam o dia inteiro na tevê, mesmo durante a programação infantil. Nesta enxurrada de violência que invade a sala pela telinha, nem mesmo desenhos e filmes passam ilesos a um exame atento. Muitos deixam os pais de cabelo em pé, preocupados com o estrago que podem fazer nos filhos. Até por isso, o prefeito César Maia, do Rio, resolveu colocar de castigo o pequeno Shin Chan, menino endiabrado de apenas cinco anos que dá nome ao desenho exibido pela Fox Kids. Em fevereiro, baixou um decreto sugerindo que as emissoras evitassem o programa. Na opinião de César Maia, avô de quatro crianças com menos de oito anos, o pestinha – que mostra o traseiro quando contrariado – é um péssimo exemplo para a garotada que fica acordada até as 22h para se divertir com suas atitudes politicamente incorretas. E, segundo pesquisa divulgada recentemente nos Estados Unidos, há, sim, razão para se preocupar.

O estudo, realizado pela Universidade de Michigan, comparou a violência vista pelos pequenos na tevê com a praticada por eles na vida adulta. Entre 1977 e 1979, foram feitas 557 entrevistas com crianças entre seis e dez anos. O objetivo era saber quais os programas preferidos e com que frequência assistiam. Quinze anos depois, os pesquisadores voltaram a 329 delas e, comparando as informações prévias com uma análise de seu comportamento naquele momento, concluíram que meninos e meninas que tiveram maior exposição a cenas de violência tornaram-se mais agressivos. Na época, entre os programas violentos estavam Cyborg, o homem de seis milhões de dólares e Mulher Biônica. O desenho Papa-Léguas era ícone da garotada e os seriados Dirty Harry e Justiça em dobro despertavam o mesmo interesse das novelas de hoje. Para o professor L. Rowell Huesmann, co-autor do estudo, tais programas passam a mensagem de que atos violentos são justificáveis e até apropriados em certas situações. É isso o que acontece quando um herói é recompensado ao vencer o bandido com tiros, socos e pontapés.

Efeitos – Comparados à programação atual da tevê brasileira, os filmes e desenhos dos anos 70 parecem tão inocentes quanto os livros de Monteiro Lobato. Que efeitos provocarão, então, os trejeitos que acompanham músicas como a Eguinha Pocotó, o mau gosto das pegadinhas que povoam as tardes de domingo e a pancadaria dos desenhos de luta japoneses? Some-se ainda o fato de, hoje, os heróis infantis terem quase sempre suas imagens ligadas a dezenas de produtos. Segundo Márcia Giuzi Mareuse, psicóloga do Laboratório de Pesquisas sobre Infância, Imaginário e Comunicação (Lapic), da Universidade de São Paulo, isso intensifica a influência sobre a criança. “Ela não está envolvida com a história apenas enquanto assiste ao desenho. Os personagens estão nos cadernos e nas mochilas. Seu universo, às vezes violento, invade o dia-a-dia da criança”, diz.

Para proteger os filhos da avalanche de violência, erotismo, consumismo e mediocridade, a saída é formar telespectadores críticos. Segundo especialistas, nada mais eficiente do que diálogo e negociação. “Personagens são amigos imaginários. A tevê é um outro espaço de relações e de brincadeira para a criança. Os pais têm que explicar por que acham determinada programação inadequada. Proibir torna o programa ainda mais atraente”, afirma Márcia. É o que faz a jornalista Ivany Turíbio, 39 anos, de São Paulo, com a filha Catarina, sete. A menina poucas vezes assiste a desenhos com temas agressivos, até porque não é estimulada para isso. “Procuro mostrar vários programas alternativos àqueles violentos”, conta Ivany. Mas, quando Catarina insiste em ver algum, a mãe senta ao lado dela e explica por que determinados comportamentos do personagem são inadequados. A tática parece funcionar. “Catarina em geral prefere assistir a desenhos mais tranquilos, como As trigêmeas. E ela tem hora para ligar a tevê. Assim, não vê programas pouco adequados para a sua idade e tem tempo para outras atividades, como ler histórias e pintar”, diz a mãe.

Especial

Horários – Segundo indicação do Ministério da Justiça, a programação é livre até as 20h. Das 20h às 21h, deve ser indicada para maiores de 12 anos; das 21h às 22h horas, para maiores de 14; das 22h às 23h, para maiores de 16. Só quem é maior de 18 deve continuar em frente à tevê após as 23h. Não é o que acontece em muitos lares. Uma pesquisa realizada pelo Ibope na Grande São Paulo mostra como é inócuo o estabelecimento de horários impróprios. Entre os dia 1º e 20 de fevereiro, o instituto registrou que o programa erótico Noite afora (Rede Tevê!) foi assistido por 6.490 crianças entre quatro e 11 anos e o Eu vi na TV, da mesma emissora, que é recheado de pegadinhas, foi visto por quase 50 mil telespectadores na mesma faixa etária.

A curiosidade por assuntos como sexo, paixão, violência e morte fazem parte da natureza humana. O problema é como são tratados. “Esses impulsos são latentes entre nós. Os programas mexem com isso, mas não o fazem de forma construtiva, com contexto e discussão”, explica a psicanalista infantil Ana Olmos. Membro da organização não-governamental TVer (www.tver.org.br) – um observatório da qualidade da programação –, Ana propõe a ampliação da responsabilidade para além do núcleo familiar. Afinal, controlar o que os filhos assistem na tevê não é tarefa fácil, principalmente quando não há opções interessantes. “Queremos sensibilizar os executivos. Será que eles indicariam a própria programação para seus filhos?”, indaga ela.

Não é apenas a violência praticada por seres reais que traz influências negativas. As falas e os gestos agressivos executados por seres fantásticos também contagiam o público mirim. Toda vez que uma batalha é travada em Yu-Gi-Oh, é difícil manter Giovanni Marques Vieira, sete anos, sentado no sofá. Inspirado nos card-games – baralhos que exibem monstros com diferentes poderes –, o desenho narra as aventuras do garoto Yugi, que se torna o mais experiente jogador de Duelo de Monstros. Cada vez que ele e o adversário lançam suas cartas sobre a mesa, as respectivas criaturas ganham vida e se aniquilam na tela da tevê. “Às vezes, vou à casa do vizinho jogar Duelo de Monstros. A gente mesmo desenha as cartas”, conta ele. Sua mãe, a costureira Maria de Lurdes Barbosa, 42 anos, percebe alterações no comportamento do garoto. “Giovanni passa o dia no sofá, do desenho para o videogame, do videogame para a novela, e fica muito agitado”, conta ela. “Falo para ele não repetir as coisas que escuta nos programas. Mas, se não deixo a tevê ligada, não consigo trabalhar”, confessa.

Valores – Na casa de Giovanni, os irmãos Samuel, Sarah e Mateus engrossam a platéia. Sarah, 14 anos, é tão fanática por Três espiãs demais que chega a desenhar os modelitos das personagens para a mãe costurar. “Elas são garotas normais, que vão à escola e adoram ir ao shopping depois de solucionar um caso. Fico com vontade de ser uma delas”, resume. Os motivos de preocupação com a tevê não se restringem à violência, mas também a valores e comportamentos inadequados. Não por acaso, a psicanalista Ana Olmos faz uma proposta à Globo, líder de audiência e retransmissora da NET, que, por dois meses, a rede disponibilize na televisão aberta os canais transmitidos em sinal fechado. “Depois de conhecer o biscoito fino, ter acesso à Discovery Channel, People&Arts e Animal Planet, ninguém vai querer voltar atrás”, aposta. Para a psicanalista, as crianças assistem a programas como Cidade Alerta, da Record, por pura falta de opção. Se o pai muda de canal, encontra a mesmice. Nem Malhação, da Globo, passa. “No seriado, ninguém é gordo nem faz supletivo. A maioria dos programas destinados aos jovens passa a mensagem de que, para ser amada, a pessoa precisa ser sarada e bonita.”

Aos 50 anos, o ator de Malhação Kadu Moliterno também rende homenagens aos canais pagos. Os filhos Kauai, dez anos, Lanai, nove, e Kanui, cinco, descartaram a tevê aberta. “Evito que meus filhos tenham contato com elementos que não fazem parte do universo infantil. Eles não conheceram personagens como Tiazinha e Feiticeira”, conta. Em casa, assistem aos canais Animal Planet e Cartoon Network. “Fora isso, temos um trato de evitar tevê sempre que houver sol e onda”, ensina. Os filhos de Kadu não estão sozinhos na predileção pelo Cartoon. O canal é campeão de audiência na tevê a cabo, líder nos períodos matutino e vespertino. No entanto, mesmo a tevê por assinatura exige cuidados. O próprio Shin Cham, que tanto incomoda o prefeito César Maia, faz parte da grade da NET. E a eles se somam outros desenhos que assustam pelos conceitos de justiça e educação que regem as relações entre os personagens. Na casa da professora de biologia Sílvia Helena Mattei de Arruda Campos, 43 anos, e do administrador de empresas Laércio de Holanda Cardoso Jr., 43, todos gostam da tevê a cabo. Mas eles ficam atentos aos desenhos que os filhos Francisco, 12 anos, Antônio, oito, e João, de apenas um, assistem. “Fico junto e procuro comentar o que não concordo. A Vaca e o Frango, por exemplo, é agressivo e sarcástico. E tento incentivar os de que gosto mais, como o Arnold, que é cuidadoso com os amigos”, conta ela.

Até algumas escolas despertaram para a proposta de criar telespectadores críticos. No Rio, o Colégio Santo Inácio realiza o projeto TV no Recreio, para alunos de cinco a sete anos. Durante 30 minutos, as crianças assistem a um desenho ou filme de qualidade. “Discutimos e as crianças conseguem ver outra solução para o impasse que não seja a violência. Claro que depende do ambiente em que vivem, mas aos poucos elas criarão seus próprios filtros”, diz o comunicador Eduardo Monteiro, responsável pelo projeto. As crianças curtem. “Aprendo a ter mais educação, a ajudar os outros e a evitar a violência. E ainda me divirto”, diz Renan Rodrigues da Cunha Gouveia, oito anos. A amiga Camila Colen Forster, também de oito anos, concorda: “Em casa, comparo e tento achar o lado legal dos programas.”

Denúncias – Também sobram apelos para que o governo entre na luta contra a busca de audiência a qualquer preço. “O Estado tem que assumir seu pedaço de responsabilidade”, destaca a psicóloga Graça Coelho, fundadora da Escola de Pais, núcleo de orientação para a infância e a adolescência no Rio de Janeiro. Um passo foi dado. Para sensibilizar emissoras e anunciantes, foi lançada em novembro do ano passado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal a campanha Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania. Qualquer um pode fazer denúncias contra programas apelativos (www.eticanateve.org.br e tel. 0800-619-619) e seus anunciantes terão seus nomes divulgados. “No primeiro mês, foram registradas 300 denúncias genéricas e 62 sobre programas específicos”, contabiliza o deputado Orlando Fantazzini (PT-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos.

Os alvos mais frequentes foram os programas dos apresentadores Ratinho, João Kleber e Sérgio Malandro, por exploração de conflitos pessoais, preconceito em relação à orientação sexual e pornografia. Os programas do Faustão e do Gugu foram o quarto e o quinto citados. Com representantes da sociedade civil foi criada a Comissão de Acompanhamento da Mídia para a análise dos programas mais votados. O sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho, da Escola de Comunicações e Artes da USP, analisa o programa do Ratinho e acha que ele infringe os direitos humanos ao discutir a paternidade de crianças diante das câmeras: “Os envolvidos são estimulados a se atracar no ar, sugerindo que a violência é meio para a solução.” Para ele, o antídoto para esse cenário é partir para uma ação política. “Temos que ampliar a discussão. Os pais precisam sair da angústia pessoal para a socialização do problema”, aconselha. Enquanto a sociedade civil e o Estado não convencem as redes de televisão de sua responsabilidade, resta aos pais driblar as inconveniências do cardápio televisivo e preparar seus filhos para que eles não engulam o lixo eletrônico com a desculpa de que é apenas entretenimento. Afinal, é brincando que as crianças aprendem