Há pouco mais de um ano, o carioca Nelson Águia não sabia o que era subir um lance de escada sem perder o fôlego e sentir um aperto no peito. Hoje, aos 69 anos, o representante comercial voltou à ativa, caminha quatro quilômetros em dias alternados e bate uma bolinha duas vezes por mês. Ele foi o primeiro paciente com problemas coronários a se beneficiar da clonagem terapêutica, uma promissora terapia para recriar artérias do coração a partir de células extraídas de sua medula óssea, e, por isso mesmo, sem risco
de rejeição. A técnica foi desenvolvida pelo médico brasileiro Emerson Perin, que dá expediente no Instituto do Coração do Texas, nos EUA, e fez uma parceria com o Hospital Pró-Cardíaco do Rio de Janeiro.

Tendo em mãos um mapa tridimensional do coração de Águia, o doutor Perin localizou as áreas lesionadas pela falta de irrigação sanguínea. Primeiro, ele retirou com uma seringa um extrato da medula óssea do paciente. Em seguida, isolou as células-tronco, substâncias capazes de se metamorfosear em tecidos cardíacos e sanguíneos. As células de medula foram introduzidas no organismo de Águia a partir de um cateter fixado em sua virilha. O resultado surgiu em quatro meses. Ao comparar as imagens do coração antes e depois da cirurgia, o doutor Perin verificou que as células-tronco da espinha regeneraram boa parte do coração comprometido. “Renasci e agora quero viver e curtir o meu neto”, diz Águia. Ninguém sabe ao certo qual o segredo dessas células-curinga, mas o fato é que elas representam a grande esperança no tratamento de doenças como o câncer, males como Alzheimer ou problemas cardíacos.

A cirurgia parece simples, mas foi um feito tão impressionante que ganhou destaque entre os mais avançados tratamentos genéticos do mundo. “É bom ver o Brasil na liderança”, orgulha-se Perin. Os detalhes da operação fazem parte do documentário DNA: o preço da evolução, programa que o canal de tevê pago Discovery exibe no Brasil no domingo 13. O entusiasmo faz sentido. Há 50, a vida do sr. Águia, assim como a de milhões de outras pessoas, estaria condenada. Tratamentos como esse seriam impensáveis antes dos avanços proporcionados por uma descoberta que abalou o mundo científico, a molécula do DNA, uma espécie de livro químico que reúne as instruções para gerar um ser vivo.

O americano James Watson e o inglês Francis Crick, que receberam o prêmio Nobel pela descoberta, não economizaram na modéstia. Em 1953, eles chocaram os frequentadores do pub Eagle, na britânica Cambridge, dizendo ter achado “o segredo da vida”. Os frutos do DNA começaram a surgir nos anos 80, quando ele se tornou a chave para identificar e tratar várias doenças. Seu apogeu foi em 2000, com o Projeto Genoma Humano, o mapeamento de todo o código genético. Com o tempo, os cientistas passaram a usar a engenharia genética para produzir animais e sementes mais produtivos, alimentos resistentes a pragas e plantas que se adaptam a diferentes tipos de solo.

Câncer – Foi na medicina, porém, que o DNA provocou um terremoto. Hoje há quase mil testes para detectar a predisposição genética para desenvolver certas doenças, entre elas o câncer. O Brasil, depois dos EUA, é o país mais avançado na pesquisa genética para diagnóstico e tratamento de tumores. Agora é possível saber com anos de antecedência quem pode ou não desenvolver alguns tipos de câncer, entre eles o de mama. “Temos condição de fazer o diagnóstico precoce e tratar o tumor no início”, diz Ricardo Brentani, diretor do Instituto Ludwig e do Hospital do Câncer de São Paulo.

A pesquisa genética também progrediu no tratamento de doenças desencadeadas por defeitos num único gene. É o caso da distrofia muscular, da fibrose cística e da doença de Gaucher, causada pela falta de produção de uma enzima que altera o fígado e, se não for tratada, pode ser fatal. A paulista Flávia de Souza Gama foi uma das primeiras pacientes a receber o tratamento no Brasil. A doença foi descoberta quando ela tinha quatro anos, e hoje, aos 13, Flávia e sua irmã Gabriela, de três anos, também portadora do mal, levam uma vida normal. Frequentam a escola, passeiam e não se lembrariam da doença não fossem as sessões quinzenais de tratamento a que são submetidas na Santa Casa de São Paulo. “Hoje basta um exame de sangue para descobrir se uma criança tem ou não uma doença genética. Muitos podem ser feitos ainda na barriga da mãe”, diz Mayana Zatz, geneticista e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo.

Contando com esses avanços, na segunda-feira 7 o casal britânico Raj e Shahana Hashmi mobilizou o Tribunal de Apelações do Reino Unido para seu drama. Conseguiu autorização para gerar um bebê sob medida para salvar a vida de seu filho mais velho, Zain, de quatro anos, que sofre de talassemia beta, uma doença genética fatal que impede seu organismo de produzir glóbulos vermelhos. Com o embrião selecionado a dedo em laboratório e geneticamente compatível com Zain, sem o risco de rejeição, os médicos podem fazer um transplante de células-tronco do cordão umbilical do futuro irmão de Zain. O casal já havia feito duas tentativas no ano passado, mas a Alta Corte Britânica abortou seus planos, dizendo que seria um grave precedente na
geração de filhos perfeitos.

Alma – “Existem 72 mil pesquisas com DNA no mundo. Como podemos saber quantas delas são moralmente aceitáveis?”, questiona o americano Jeremy Rifkin, autor de O século da biotecnologia. Até hoje, ainda não há salvaguardas legais para assegurar que essas pesquisas não sirvam só para criar bebês que correspondam às expectativas dos pais em quesitos como beleza, inteligência e gosto pelas artes. Pode parecer ficção científica, mas o conhecimento atual da genética permite escolher um filho como se fosse uma peça de roupa. James Watson, um dos pais do DNA, defendeu o direito de cada um fazer o que bem quiser de seus genes, inclusive criar bebês sob medida. “Não concordo que a sociedade imponha regras aos indivíduos sobre como usar o seu conhecimento genético”, disse. Ele vai além. Defende que a própria consciência humana tem origem genética. Se comprovado, seu estudo, que foi publicado na revista Nature Neuroscience, derruba por terra tudo o que a Igreja e a filosofia pregaram sobre a alma.

“O único problema é que as descobertas são rápidas e as leis, lentas. A ciência sempre atropela a legislação”, diz Volnei Garrafa, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. Ainda assim, a genética se apresenta como uma panacéia para solucionar todos os males. Uma pesquisa internacional encomendada pelo canal Discovery ao instituto inglês Ipsos revelou que os brasileiros são os mais crédulos na genética como a chave para definir o futuro da raça humana. Enquanto ingleses e americanos são reticentes, três em cada cinco brasileiros apóiam as terapias com manipulação de genes.

Apesar dos dilemas éticos, é difícil condenar um casal que busque garantir a seu filho uma saúde perfeita e talentos natos, como a inteligência. O mau uso da ciência é o que preocupa. Ninguém se surpreenda se daqui a alguns anos, para ser aprovado num emprego, o candidato apresente um exame genético como prova de que não vai ter problemas graves de saúde. O mesmo se aplica à escolha de um convênio médico, que pode recusar um possível cliente cujo exame indique uma propensão para algum mal degenerativo. Nesse caso, não vale o livre arbítrio. Basta tomar um cafezinho e deixar a saliva no copo de plástico. Foi o que aconteceu com a jovem Roberta Jamilly, 24 anos, que descobriu ter sido sequestrada como seu irmão Osvaldo Martins Borges Júnior, o Pedrinho. Os dois conheceram a identidade de seus pais biológicos a partir de exames de DNA. A diferença é que, no caso da moça, o material foi colhido à sua revelia, a partir de uma bituca de cigarro jogada no lixo de uma delegacia onde ela prestou depoimento. “Ninguém está livre de ser investigado geneticamente”, alerta Mayana. Só boas leis impediriam que os genes sejam usados contra a própria pessoa.

A estrutura do DNA também permitiu à Justiça resolver crimes que pareciam insolúveis. Muitos prisioneiros americanos no corredor da morte foram soltos depois que exames genéticos provaram sua inocência. Os resultados podem ser conseguidos com qualquer fragmento encontrado na cena do crime, como um fio de cabelo, gota de sangue, pedaço de pele ou gota de esperma.

Outra alternativa promissora na medicina é a clonagem terapêutica com células-tronco embrionárias. Diferentemente das células-tronco adultas encontradas na medula óssea – usadas na cirurgia do carioca Nelson Águia –, essas são as primeiras células de um embrião humano antes de ele virar feto. Ao se multiplicar, elas conservam a capacidade de se transformar em qualquer tipo de célula. Poderiam formar, por exemplo, células neurológicas, hepáticas ou renais.

Muita gente na ocasião da descoberta do DNA pregou que era o fim da biologia. Afinal, se descobriram o manual de instrução do ser humano, o que mais haveria para desvendar? Hoje sabemos que o que Crick e Watson fizeram foi abrir as portas para uma nova era, que ainda está em sua infância. O grande passo da engenharia genética agora é traduzir em detalhes o manual da vida. Um dos caminhos é a proteômica, o estudo das proteínas existentes numa célula. O DNA e os genes não fazem nada sozinhos. Isso explicaria por que, apesar de termos quase a mesma quantidade de genes de um chimpanzé ou de uma banana, somos quem somos. O desafio da humanidade agora é desvendar o funcionamento das proteínas. “Será um impacto maior do que o do genoma humano”, diz o bioquímico Rogério Meneghini. O mapeamento das proteínas pode revelar por que cada indivíduo reage de maneira diferente a determinadas doenças. E abriria caminho para a criação de remédios personalizados. “Na prática, antes de o médico receitar um medicamento, ele fará um teste genético para saber com qual droga obterá melhor resposta naquele paciente”, diz Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da USP. Ainda há muito caminho pela frente. Pelo andar da carruagem, em 50 anos celebraremos conquistas hoje ainda inimagináveis.

A gênese como inspiração

A celebração do meio século da descoberta do DNA se estende por vários campos, entre eles, o artístico. Pelo menos seis exposições de arte em Nova York exibem obras e instalações cujo tema gira em torno da identidade humana confrontada pela engenharia genética. Trinta e três artistas internacionais estão reunidos na mostra Quão humano: a vida na era pós-genoma, no Centro Internacional de Fotografia, em Nova York. Aberta até 25 de maio, a exposição mostra como artistas e fotógrafos reagem às inovações da biotecnologia. Assunto não falta: desde alimentos transgênicos até embriões humanos, passando pelos clones, cobaias e envelhecimento. E, claro, a famosa ovelha Dolly, o primeiro animal clonado a partir de uma célula adulta.

Um dos principais nomes da arte de vanguarda internacional, o artista brasileiro Eduardo Kac já levantou celeuma ao misturar arte
e biotecnologia. Em uma de suas obras, o professor da Universidade de Chicago extraiu do livro bíblico Gênesis um trecho que usou para dar origem ao código genético das bactérias que compõem seu trabalho. A partir da frase que reza que o ser humano deve exercer seu domínio sobre as demais criaturas da Terra, Kac converteu cada letra do alfabeto, em inglês, em sinais do Código Morse. Em seguida, ele as traduziu para informações genéticas. Assim, a frase se transformou numa sequência de DNA com suas respectivas letras químicas – A, T, C e G.

Kac também causou alvoroço ao dar vida à coelha Alba, um animal fluorescente que fica esverdeado toda vez que a luz incide sobre ele. A coelha recebeu um trecho do código genético de uma medusa, que naturalmente brilha à luz. Alba foi geneticamente modificada pela equipe do biólogo francês Louis-Marie Houdebine sob encomenda do artista brasileiro. Como levantou uma gritaria ética, o animal modificado por motivação artística e estética foi confiscado e jamais chegou a conhecer a casa de seu dono, em Chicago. A obra de arte não é exatamente a coelhinha transgênica, mas a relação dela com o espaço social. Mesmo que consiga a liberdade de sua coelha verde, Kac não vai parar por aí. Seu objetivo é acirrar o debate em torno da engenharia genética, que na ciência é usada para assinalar as diferenças. Por ironia, é ela também quem evidencia as semelhanças entre os seres, todos eles feitos à base da mesma receita, o DNA.

Pé na África

Quem é negro no Brasil? Para a ciência, ninguém – ou todos. Uma pesquisa realizada no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e publicada na revista americana Human Biology colocou mais lenha nessa fogueira. O estudo analisa os componentes genéticos de 150 doadores de sangue e conclui que ninguém neste país é totalmente branco ou negro. Todos temos um pezinho na África ou na Europa, ao gosto do freguês.

Os eurobrasileiros combinam 67% de genes europeus com 21% de material genético africano e 12% indígena. Já os afrobrasileiros têm 49% de genes africanos e 39% de europeus, e os mesmos 12% de origem indígena. A pesquisa, coordenada pelo professor Marcos Palatnik, da faculdade de medicina da universidade, foi realizada entre 1998 e 2001, com a colaboração dos médicos Angela Estalote, Wilson da Silva Jr. e Marco Antonio Zago.

Tudo começou no início da década de 90, quando uma pesquisa mostrou que a incidência de diabete no Brasil independia da cor
da pele, ao contrário do que acontece nos países mais ricos. Os endocrinologistas Adolpho Milech e José Egidio de Oliveira resolveram, em 1996, checar a prevalência da doença no Rio. Após um estudo com 250 pacientes, chegaram à mesma conclusão: 7,6% de diabéticos entre brancos e 7,3% entre negros. Nos EUA, a incidência é maior entre negros por fatores genéticos e ambientais ainda não esclarecidos.

Por que o Brasil seria diferente? Foi para esclarecer esse fenômeno que Palatnik e sua equipe entraram em campo. Eles detectaram
entre os brasileiros uma miscigenação racial tão ampla que torna praticamente impossível a diferenciação científica por raças. “Aqui
não tem branco completamente branco. A cor da pele é apenas a raça aparente. O Brasil é feito de uma população híbrida, uma mistura de diferentes regiões geográficas, predominantemente da África e da Europa”, diz o professor. Nos Estados Unidos, explica José Egidio, há quatro grupos raciais definidos: branco, negro, índio americano e habitante das ilhas da Ásia e do Pacífico. No Brasil, a sutileza é maior. A gradação da pele vai do branco ao negro, passando por vários tons de mulato e branco escuro. Diante dessa realidade, fica difícil definir quem pode ou não usufruir da polêmica lei das cotas para negros no ensino superior.

Eliane Lobato