Manoel Marques

Como há centenas de anos, os índios das tribos caiapó, carajá, tapirapé, nhambiquara e xavante que vivem no Centro-Oeste e no Norte do País saem para caçar nas florestas. Seus olhos não buscam o alimento do dia-a-dia. Os índios partem em captura de onças, tatus, macacos, tartarugas, tucanos, araras, gaviões e outros animais raros. Retalham seus corpos e entregam os pedaços a comerciantes de artesanato indígena e a funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai), que exportam o material para lojas nos EUA e na Europa. Parte dos bichos está ameaçada de extinção e, por lei, não poderia ser abatida. Nem pelos índios. Na quinta-feira 13, a Polícia Federal desencadeou a Operação Pindorama e prendeu 12 pessoas entre funcionários públicos e comerciantes. Além de ossos e plumagens, a PF apreendeu cerâmicas marajoara prontas para ser exportadas. Os acusados vão responder por crimes contra o meio ambiente e o patrimônio histórico, e ainda por contrabando, corrupção e formação de quadrilha.

Essa exportação bizarra ocorre há pelo menos oito anos. Os pedaços de animais eram enviados pelos Correios e tinham como destino as lojas Rain Forest
Crafts e Tribal Arts, no Estado americano da Flórida. Os pedidos eram feitos pelo empresário americano de origem tcheca Milan Hrabovsky, conhecido como Milano, que está preso nos EUA desde o ano passado, quando foi condenado a 40 meses de prisão por vender produtos manufaturados por índios da Amazônia. Milano é o dono das duas lojas nos EUA e de uma filial em Slavkov, na República Tcheca, administrada por sua irmã Marie Hrabovsky, que também recebe do Brasil os pedaços dos animais. Casado com a brasileira Sônia Pessoa, Milano visitou
o País várias vezes e fez contato com comerciantes de artesanato indígena no
Mato Grosso, Pará e Amazonas.

Da Flórida, Milano coordenava o esquema de contrabando. Os pedidos eram enviados por fax aos comerciantes e funcionários da Funai em vários pontos do País, com a tabela de preços de cada pedaço de bicho. Assim que recebia a mercadoria, ele mandava novas orientações e comprovantes das ordens de pagamento feitas nas contas dos servidores públicos e dos comerciantes. Milano orientava seus fornecedores brasileiros a enviar as partes dos animais em um pacote via sedex. Experiente, ele tinha o cuidado de pedir ao remetente para não citar seu nome como o destinatário da correspondência. Milano era exigente. Um dos seus pedidos estipula em R$ 9 o preço de um dente de onça com mais de seis centímetros. Se a presa fosse menor, o valor caía para R$ 5. Um bico de tucano era cotado a R$ 4 e a unha de um tatu-canastra com mais de nove centímetros, a R$ 8. “Os índios matam os animais e, se as presas ou garras não se enquadrarem no pedido, o material é jogado fora, porque índio não come carne de onça. É cruel”, lamenta o delegado Jorge Pontes, chefe das investigações.

Depois de um ano e quatro meses de investigação, a Polícia Federal identificou o maior exportador dos pedaços de animais, o comerciante Noel Rachid, dono da Casa Monte Líbano, em São Félix do Araguaia (MT). Ele fazia as compras diretamente nas aldeias. Rachid enviava as encomendas para Milano ou para sua irmã. As plumagens mais comuns eram vendidas, legalmente, em suas lojas.

As investigações da PF indicam que alguns servidores da Funai agiam como aliciadores dos índios. É o caso de Marcos Raimundo Rabelo, ex-gerente de depósito da Artíndia, loja de artesanato indígena que funciona na sede da Funai,
em Brasília. Tratado por Milano como amigo nos faxes enviados da Flórida para a sede da Funai, Rabelo controlava os depósitos feitos na conta número 200231-0,
da própria Artíndia, no Banco do Brasil. Outro funcionário integrante da máfia exportadora é Francisco das Chagas Cavalcante, chefe do posto indígena ricbacta, em Juína, em Mato Grosso. Em 2001, Cavalcante recebeu um fax de Milano com o pedido de uma coroa radial de gavião de penas escuras. “Favor não mandar material de segunda qualidade, eu prefiro esperar quando o senhor tiver material de primeira qualidade”, avisou Milano.

O contrabandista contava com a colaboração de Lígia Neiva. Vivendo na tribo
cinta-larga desde os 16 anos, a pedagoga mandava plumagens, dentes e garras
de vários animais para a irmã de Milano. Num dos pedidos, Milano exige “adorno dorsal somente se tiver pena de gavião, garras do pássaro, presas de onça e adornos da tribo zoró”. A PF descobriu ainda que o índio Missico Oiampi, do Amapá, fazia parte da máfia. Auxiliar de serviços gerais da Funai em Macapá, ele foi presidente da Associação dos Povos Indígenas do Tumucumaque e hoje esconde-se na reserva da tribo.

Missico usava a associação para fazer as encomendas aos índios e depois mandá-las aos EUA. Em fax enviado há três anos pelo empresário para o funcionário Arlison Gonçalves Henrique, da Funai em Macapá, Milano agradece a encomenda recebida e informa que depositou R$ 530 na conta do índio, alertando que ainda tem um crédito de R$ 257 com os fornecedores. Outros funcionários públicos estão envolvidos no contrabando.

A PF descobriu que um analista ambiental do Ibama em Altamira, no Pará, Carlos Renato Leal Bicelli, dava cobertura ao irmão Marcelo no envio de material indígena aos EUA. Marcelo, que vive na França, recebeu um depósito de US$ 300, feito por Milano. O que mais choca na atuação dos contrabandistas é que, para extrair os dentes de uma onça ou as garras de um gavião, os animais precisam ser mortos. Depois de retalhados, seus restos são abandonados na mata. Pior: onças e gaviões são considerados animais sagrados por várias tribos e fazem parte da mitologia de várias nações.