O ex-governador Anthony Garotinho critica a políticaeconômica de Lula e afirma que reforma tributária sócom um novo pacto federativo

Com 15 milhões de votos no primeiro turno das eleições presidenciais, o ex-governador Anthony Garotinho (PSB) aderiu no segundo turno ao petista Luiz Inácio Lula da Silva, que aumentou seu porcentual de votos no Rio de Janeiro de 40% (terceiro pior desempenho em todos os Estados) para 79% (o melhor do País). Garotinho ainda elegeu a mulher, Rosinha Matheus, governadora no primeiro turno. Com tanto cacife, foi convidado por Lula para o Ministério, mas recusou. Desde então, não emplacou sequer um diretor da Petrobras, que produz 80% do petróleo no Estado. Ainda viu Lula nomear dois de seus maiores adversários: a ex-governadora Benedita da Silva para o Ministério da Assistência Social e o sociólogo Luiz Eduardo Soares para a Secretaria de Segurança Pública. Rosinha não teve nenhuma reivindicação econômica atendida pelo governo federal, que bloqueou o repasse de ICMS para o Estado. Quinze quilos mais magro do que na campanha, Garotinho divide o tempo entre percorrer o País para reorganizar o PSB e ajudar a mulher a desatar o nó de um Estado sem dinheiro para pagar o funcionalismo. Abalado pelas articulações do ministro José Dirceu (Casa Civil) para enfraquecê-lo no partido e pelo escândalo dos fiscais corruptos no Rio, revelado por ISTOÉ, Garotinho mostra que ainda sonha com a Presidência e critica a política econômica do início do governo Lula.

ISTOÉ – Que balanço o sr. faz dos 100 dias do governo Lula?
Anthony Garotinho

É uma injustiça fazer uma avaliação dos 100 primeiros dias de qualquer governante de forma conclusiva,
mas podemos ter pistas. O governo foi muito bem na área externa, passou para o mundo uma imagem de tranquilidade no Brasil, ainda
está tímido quanto às grandes necessidades sociais do País e, na
área econômica, há um prosseguimento, um prolongamento da
política do governo Fernando Henrique.

ISTOÉ – Esse prolongamento não tem sido fundamental para a imagem de tranquilidade que o sr. elogia?
Anthony Garotinho

Só o tempo poderá dizer se esse prolongamento foi uma estratégia ou se é uma concepção de política econômica. Torço para
que seja uma estratégia e logo o governo tenha condições de apresentar ao povo um modelo econômico que não privilegie o capital financeiro, que promova a distribuição de renda e leve a uma inserção diferente do Brasil no mundo.

ISTOÉ – Em tese o sr. é um aliado do governo, mas na prática suas críticas são frequentes. O sr. é governista ou oposicionista?
Anthony Garotinho

A questão não é tão simples. O partido deve colaborar para os acertos, mas ser sincero quando as questões confrontam com a nossa história, como na autonomia do Banco Central. Precisamos saber se o governo propõe uma autonomia nos moldes do banco central americano, que tem 12 bancos centrais regionais, cada um com nove diretores indicados pelo setor produtivo local, pelo sistema financeiro local e por representantes dos trabalhadores. É um banco central com alto controle social, enquanto o nosso só tem representantes do sistema financeiro. Precisamos de um BC que represente os interesses do País, como o da Alemanha, que serviu de modelo para o banco central europeu. Por tudo isso, não é tão simples dizer que quem é governo deve sempre votar a favor. Quem mais apóia a autonomia do BC é quem deveria ser oposição, o PSDB e o PFL.

ISTOÉ – Não parece incoerência o governo buscar mais o apoio do PMDB e do PP do que dos aliados históricos do PT?
Anthony Garotinho

Se o modelo é o mesmo do governo Fernando Henrique, o apoio para os projetos virá da mesma base. Mas a vitória nas eleições foi a do sentimento de mudança. O Brasil não votou pela manutenção da mesma política geradora de desemprego, violência e concentração
de renda. Votou com outras expectativas e está dando um crédito de confiança. Se fosse para votar na mesma política, teria votado
em José Serra. Eu gostaria que os próximos passos fossem em outra direção. Há uma divisão clássica. Um lado entende que este modelo
é necessário para que o País retome o crescimento. É a visão da era Malan, que está vigorando até agora. Nossa visão é de que só
a retomada do desenvolvimento poderá criar as condições para o País romper este modelo.

ISTOÉ – É verdade que o sr. passou a atacar o governo porque não conseguiu a presidência da Petrobras?
Anthony Garotinho

Absolutamente. Eu inclusive declinei do convite do presidente Lula para ser ministro.

ISTOÉ – Brasília trata a governadora do Rio como aliada?
Anthony Garotinho

Entendemos que no início de qualquer mandato é sempre difícil porque as pessoas estão reconhecendo o gramado. A governadora encontrou o Estado numa situação difícil e apresentou ao presidente suas reivindicações. Nenhuma delas foi atendida até agora. São propostas que não alteram o contrato de 1999, quando renegociei a dívida de todos os meus antecessores num único contrato. Foi uma solução muito elogiada por ter sido boa para a União e para o Estado. Ela não altera o superávit primário, não causa nenhum problema para a União. Acredito que não houve entendimento ainda porque eles estão examinando com atenção.

ISTOÉ – O sr. é candidato a presidente em 2006?
Anthony Garotinho

Essa questão não pode ser precipitada. Eu estou fazendo 43 anos. Em 2006, terei 46 anos. Lula foi eleito com 58. Tenho um grande capital a meu favor.

ISTOÉ – Mas o sr. continua querendo chegar à Presidência?
Anthony Garotinho

Sim. Pode ser aos 46, aos 50, aos 54, aos 58 …

ISTOÉ – Todos os pólos do PSB fora do Rio, como o deputado Miguel Arraes (PE) e os governadores Ronaldo Lessa (AL) e Paulo Hartung (ES), estão mais governistas do que o sr. Por quê?
Anthony Garotinho

Aliança não significa rendição e apoio não significa abrir mão de idéias. O PSB tem pessoas com uma tendência ao apoiamento incondicional, outras têm uma tendência a um apoio que não fira nossos princípios, o que pregamos na campanha. Isso não quer dizer que exista um confronto dentro do partido.

ISTOÉ – Como resolver essa divisão interna do PSB?
Anthony Garotinho

Temos um calendário. Em setembro, teremos congressos municipais, em outubro os estaduais e no início de dezembro o
congresso nacional. Até lá essas questões vão ser debatidas e
as bases vão manifestar suas opiniões de forma definitiva, sem
parecer a posição só de A ou B.

ISTOÉ – Diante da divisão do PSB e das dificuldades da governadora Rosinha com o Planalto, o sr. não se arrepende de ter recusado o convite para o Ministério?
Anthony Garotinho

Ao me convidar, o presidente manifestou a vontade de construir uma espécie de ministério do Brasil. Ventilava nomes como o meu, o de Ciro Gomes, o de Leonel Brizola e o de Itamar Franco. Fui muito franco e disse que um Ministério com essa formação poderia ser prejudicial ao governo pelas grandes dificuldades de contornar divergências, visões. Minha recusa foi no sentido de colaborar com Lula e deixá-lo à vontade. Não me arrependo.

ISTOÉ – O governo federal pode anunciar a construção da nova refinaria de petróleo em Pernambuco. Como o Rio se posiciona?
Anthony Garotinho

O Rio produz 81% do petróleo brasileiro, mas refina apenas 12%. Há uma transferência de riqueza enorme para outros Estados. Pelos estudos da Agência Nacional do Petróleo (ANP), o Brasil tem necessidade de pelo menos três refinarias. A de Pernambuco não é incompatível com a do Rio. Acredito que o presidente anuncie em breve uma refinaria no Rio porque os grupos privados que querem construí-la aqui já existem, não há custo para a Petrobras. Eles só querem a garantia do fornecimento do óleo. Ninguém vai fazer um investimento do porte de uma refinaria de petróleo para amanhã não ter a matéria-prima.

ISTOÉ – O sr. acha que o governo Lula vem enfrentando a violência como um problema federal?
Anthony Garotinho

Acredito, pelas palavras do ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça), que o governo esteja sinceramente preocupado com a segurança pública. Ele sabe de sua responsabilidade constitucional com os dois principais fatores da violência: armas e drogas. Em 2000, entreguei ao presidente Fernando Henrique o plano estadual de segurança do Rio, com medidas estaduais e algumas que deveriam ser adotadas pela União. Ele não tomou providências, mas vejo agora que o governo sinaliza com algumas dessas medidas. Já naquela época pedíamos a construção de presídios federais, a mudança do Código Penal para tornar inafiançável o crime de receptação, a mudança do Código de Processo Penal para torná-lo mais ágil, a mudança do inquérito policial. Tudo depende da ação direta do governo federal ou junto ao Congresso para mudar a Constituição. Pedimos o aumento do efetivo da Polícia Federal, a assinatura de convênio para transferir aos Estados a fiscalização das empresas privadas de segurança. No Rio de Janeiro há cerca de 100 mil vigilantes privados, com dois policiais federais para fazer a fiscalização. É impossível! São 700 homens da PF no Rio e só dois cuidam da vigilância privada. Como isso pode dar certo? Se o governo federal cumprir sua parte, vai ficar fácil para todos os governadores. O Rio não tem fábrica de armas, plantação de maconha ou refino de cocaína. Isso entra no Estado e a responsabilidade pela fiscalização de portos, aeroportos e das fronteiras é federal.

ISTOÉ – A imagem de insegurança no Rio pode mudar? Em quanto tempo?
Anthony Garotinho

A política de segurança deve ser permanente. Quando há descontinuidade, surgem bolhas fortes de insegurança. Exceto o episódio do ônibus 174, qual foi o outro grande evento de insegurança verificado na minha gestão? Tivemos os sequestros acabados, pela primeira vez houve redução do valor dos seguros de carros por uma queda significativa do roubo e furto. Houve uma estabilização com tendência de queda no número de homicídios e houve uma organização do aparelho policial. O Estado foi dividido em áreas de insegurança, cada área com um responsável e um monitoramento mensal, uma política específica para cada um dos 36 distritos policiais. No governo Benedita, houve uma interrupção, a mudança de um plano de três anos e três meses e a implementação de um outro para nove meses. Isso desestruturou o aparelho policial e, claro, fortaleceu as forças criminosas. Elas nunca deixaram de existir, mas estavam acuadas. Todos os grandes traficantes foram presos na nossa gestão, inclusive Fernandinho Beira-Mar. Mas o tráfico não deixa de existir quando um chefe é preso.

ISTOÉ – Até porque eles continuam comandando os negócios de dentro da cadeia …
Anthony Garotinho

Isso é relativo. O monitoramento deles foi feito para que pudéssemos prender os outros. Era necessário para entendermos
a mecânica do crime. Houve uma visão distorcida de que o governo
do Rio deixava entrar celular na prisão para poder ouvir o traficante. Nunca deixamos celular entrar. Mapeávamos o celular dos criminosos
e, com autorização da Justiça, fazíamos escuta legal. Depois, retirávamos o celular.

ISTOÉ – O sr. acha que a repercussão de um crime no Rio é maior do que em outros Estados?
Anthony Garotinho

Sem dúvida. O tratamento que a imprensa do Rio dá à violência é totalmente diferente do da paulista, por exemplo. Há muito mais emocionalismo do que a cobertura do fato e acaba gerando uma comoção social grande. Para pegar alguns exemplos, sem nada contra, imagine se houvesse no Rio uma rebelião simultânea de todos os presídios. Ou se a filha do Silvio Santos tivesse sido sequestrada, se depois do resgate pago o sequestrador pulasse o muro da casa para sequestrar o Silvio Santos e obrigar o governador a ir até lá negociar pessoalmente. Ou então que tivessem sido mortos sucessivamente vários prefeitos de cidades importantes, como Campinas e Santo André. Ninguém chegou a cogitar de intervenção em São Paulo por causa disso. Um tema tão importante para a vida das pessoas não pode ser partidarizado. Tem de ser tratado de forma firme, porém de forma científica e profissional.

ISTOÉ – O escândalo dos fiscais prejudicou sua imagem? O sr. acha que a opinião pública faz uma ligação entre o fiscal Rodrigo Silveirinha e Garotinho?
Anthony Garotinho

Não há dúvida de que num primeiro momento fica uma sombra, mas ficaria muito mais se eu tentasse impedir a fiscalização. Há uma tentativa de politizar, mas a transparência com que sempre tratei a vida pública inibiu a manipulação. Quando saí do governo, abri espontaneamente meu sigilo bancário e o fiscal, não temo investigação nenhuma. Embora tenhamos o voto de 50 dos 70 deputados, pedimos a CPI e me prontifiquei a depor imediatamente. Um governante não pode ser responsabilizado por um ato de um mau funcionário. A maioria desses recursos já estava na conta dos fiscais nos anos de 96, 97 e 98 e eu só assumi em 99. Todas as denúncias que tive mandei apurar. Quando terminar a CPI e tudo ficar claro, vou continuar de cabeça erguida.

ISTOÉ – Qual a principal reivindicação do Rio na reforma tributária?
Anthony Garotinho

Só queremos tratamento igual para todos. O que você não pode é ter todos os produtos taxados na origem e o petróleo, que é a riqueza do Rio, taxado no consumo. Perdemos mais de R$ 1 bilhão por ano com essa injustiça, que só acontece com o petróleo e a energia. A reforma tributária precisa desonerar a produção, deslocar a cobrança dos impostos para o consumo, como existe na maioria dos países. O segundo ponto é desonerar os produtos de exportação para que o Brasil aumente a competitividade. O terceiro é acabar com a falta de compromisso entre os entes federativos. A União foi criando uma série de tributos que não foram repassados para Estados e municípios, como a CPMF, o IOF e outros impostos. Ao mesmo tempo, transferiu várias atribuições. Se você não monta um pacto federativo e diz o que é de responsabilidade de cada um e o que cada um tem para cumprir essa responsabilidade, fica difícil. Embora na Constituição a responsabilidade de combater o tráfico de drogas e de armas seja federal, o Rio gasta 70% de seus recursos para segurança combatendo o narcotráfico, sem receber nada para isso. Só sai reforma tributária com a remontagem do pacto federativo. Ou vai ser mais um arremedo que vai tentar resolver uma equação sem solução. Todo mundo quer reduzir impostos, quer pagar menos, e todo mundo quer arrecadar mais. Isso é uma equação que não fecha.