O pânico coletivo que parece assolar o Rio de Janeiro produziu na segunda-feira 30 um fenômeno de massas inusitado. O cenário era chocante: pais desesperados buscando os filhos nas escolas, trabalhadores sitiados dentro de lojas, comerciantes assustados ignorando apelos da polícia para reabrirem suas lojas. Num efeito dominó inacreditável, tudo foi fechado, nos quatro cantos da cidade e em toda a região metropolitana. Quem mandou fechar? Um exército mambembe de adolescentes e jovens, de chinelos e bermudas, muitos a pé ou de bicicleta. Eles percorreram 40 bairros da capital anunciando que o comércio deveria ser lacrado por ordem do tráfico. O arrastão psicológico mostrou que o carioca não precisa mais de balas para se abaixar. “A mensagem é clara: não reaja. Se é para fechar, fecha. Se é para pular, pule. Obedeça”, diz a psicóloga Fernanda Maria Amaral, que trabalha com crianças e adultos com síndrome do pânico decorrente da violência. Por que o carioca obedeceu ao feriado decretado por bandidos se a maioria das pessoas não viu armas, nem bandidos, nem mesmo ouviu as ameaças? “Medo, muito medo no inconsciente coletivo. É mais contagioso do que qualquer vírus”, afirma a doutora em psicologia Júnia de Vilhena, da PUC. Espremidos entre o terror dos criminosos e o desamparo do Estado, os cariocas acordaram na terça-feira incrédulos e envergonhados pela passividade com que obedeceram ordens de algumas dúzias de jovens descamisados.

Imaginar um bando de adolescentes mandando fechar o comércio de cidades como Nova York ou mesmo da avenida Paulista não faz o menor sentido, admite o sociólogo Luiz Eduardo Soares, candidato a vice-governador na chapa da governadora Benedita da Silva (PT) e um dos coordenadores do programa de segurança de Luiz Inácio Lula da Silva: “Foi patético, mas justificável. No Rio há uma cultura do medo, fundada em experiências dolorosas que dizem que o razoável é sempre se render a qualquer ameaça, nunca pagar para ver.” Três pontos, segundo Soares, explicam o aparentemente inexplicável comportamento dos cariocas: os fatos reais, de aprendizes de bandidos circulando com as ordens dos traficantes; o efeito dominó causado pelo medo; e a postura dos políticos adversários, que se apressaram a explorar os fatos em vez de se juntarem às forças legais para tranqüilizar a cidade.

Talvez o pior efeito da triste experiência carioca seja o day after. O que pode frear a megalomania de marginais que, sem um tiro, fecham a segunda maior cidade do País? Como reagir aos próximos passos de uma bandidagem tão desinibida? Os dias seguintes provaram que o desafio para o próximo presidente no campo da segurança não se resume à tragédia do Rio. Bandidos ordenaram o fechamento do comércio na periferia de Osasco, na Grande São Paulo. Foram obedecidos. Em São Sebastião, litoral paulista, fizeram o mesmo
nos bairros de Olaria, Itatinga e Topolândia.

Farc – Estrategista militar, o general da reserva Carlos Eduardo Jansen acha que os traficantes, que já usam armas de guerra, adotaram uma estratégia militar, possivelmente aprendida por Fernandinho Beira-Mar em seu “estágio” nas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). “O componente psicológico, como num jogo de xadrez, é usado na arte da guerra desde tempos imemoriais. É o inimigo sem rosto”, diz Jansen, coordenador do esquema de segurança da conferência Rio 92. O general compara o método de Beira-Mar ao usado pelo saqueador Átila, o Huno, que apavorava exércitos rivais com a fama de sanguinário, muitas
vezes sem pisar o campo de batalha.

Foi surfando em ondas de terror e paranóia que o crime fechou o comércio do Rio. Flávio Lima, segurança do McDonalds da praça General Osório, em Ipanema, viu um garoto passar de bicicleta berrando: “O tráfico mandou fechar!” Nem titubeou. Na lanchonete Chaika, point da juventude dourada de Ipanema, o empresário César Silva também fechou. Foi a primeira vez em 40 anos. “Mataram a mãe do Fernandinho Beira-Mar”, ouviu dizer. Em casa, André Cavalcante, 25 anos, estudante de direito da Faculdade Estácio de Sá, recebeu ligação apavorada de uma amiga: “O tráfico fechou a zona sul.” Foi conferir e encontrou os portões cerrados. O medo amplificou boatos e versões absurdas ecoaram: fecharam os hotéis da orla, pararam o metrô, jogaram granadas numa faculdade, explodiram postos de gasolina, há tiroteios por toda parte. Nada disso aconteceu. Fora da capital, 13 ônibus foram incendiados e uma mulher sofreu queimaduras. No dia seguinte, traficantes saquearam um supermercado na Tijuca e mandaram fechar um posto de saúde em Campo Grande e sete escolas estaduais na Baixada Fluminense. O carioca vai às urnas com medo dos boatos de que a bandidagem atrapalharia as eleições. A governadora pediu tropas federais ao presidente Fernando Henrique, que pôs o Exército de prontidão.

Blecaute – O crime premeditado dos traficantes foi gravado pelo Ministério Público. Em 15 de setembro, pouco antes de ser removido para o Batalhão de Choque da PM – onde já estavam Fernandinho Beira-Mar e quatro cúmplices do Comando Vermelho –, o traficante Marquinhos Niterói deu ordem para organizar o que chamou de “blecaute na zona sul”. “Tem que parar tudo, comércio geral”, exigiu Marquinhos a um comparsa. Queriam protestar contra o isolamento do bando no quartel da PM. A gravação foi encaminhada ao secretário de Segurança, Roberto Aguiar. Ele afirma ter tomado as medidas cabíveis e que a ação do dia 30 não foi a mesma da detectada pelo MP.

Adversários de Benedita fizeram a festa e mostraram imagens do comércio fechado como símbolo da falta de comando, mas não foi uma semana de perda total para o governo. Benedita recebeu o apoio de líderes do comércio e da indústria, que elogiaram sua política de segurança. Pôs 40 mil policiais nas ruas e isolou ainda mais o bando preso no quartel da PM. Beira-Mar, que já não recebia parentes, perdeu o direito de visita dos advogados. Em tempo recorde, o comércio e a indústria se uniram contra o submundo. O presidente da Federação do Comércio do Estado, Orlando Diniz, estimou prejuízo de R$ 130 milhões e anunciou uma “guerra pacífica” contra o tráfico. “Desempregados e excluídos compõem um exército de reserva do narcotráfico. Não é possível combater a situação pondo mais polícia na rua. A solução vem de um conjunto de ações sociais e econômicas”, pregou. Para ele, a ordem pública e o estado democrático estão ameaçados. “É por isso que a sociedade precisa ocupar esses espaços. Estamos todos ficando reféns.”

Se o episódio envergonhou o Rio, não faltaram histórias de resistência. A juíza Denise Frossard, famosa pela condenação dos banqueiros do
jogo do bicho e candidata a deputada federal pelo PSDB, estava em seu comitê em Botafogo quando um jovem mandou fechar. Ela deu-lhe voz de prisão. O moleque correu, mas foi um dos 19 presos pela polícia. No dia seguinte, Denise anunciou apoio a Benedita, afirmando não querer a volta da “tolerância com o crime”. O empresário Pedro De Lamare, que não pôde levar o filho de quatro anos à escola, decidiu manter aberto seu restaurante, o Gula-Gula, em Ipanema. “Não vou ser tomado pelo pânico”, disse. Redutos da boemia também levantaram a cabeça: três famosos botequins do Leblon – Jobi, Clipper e Bracarense – mantiveram as portas abertas. “Disseram que meninos mandaram fechar. Não vi nada e decidi ficar aberto”, conta Narciso Rocha, dono do Jobi. Ainda há esperança. Como ilustram os outdoors do Rio BR, o festival de cinema em cartaz na cidade, “o Rio é coisa de cinema”. Pena que nos últimos tempos este seja um filme triste.