“Eu nem dou muita trela para estes gringos. Eles vêm aqui, conversam com a gente, prometem um monte de coisa e nunca cumprem”, diz a maranhense Maria Leonarda Ribeiro, a dona Naná, de 62 anos, uma das mais antigas moradoras de Heliópolis, a maior favela de São Paulo, na zona sul da capital. Ela já está acostumada a ver estrangeiros visitando o lugar onde vive há 30 anos. Mas, mesmo ressabiada, até que foi simpática com os dez “gringos” que foram conhecer Heliópolis na última semana. Eram alguns dos 25 integrantes da Força-Tarefa Mundial para Urbanização de Favelas, da ONU, que fez sua segunda reunião em São Paulo e da qual faz parte o secretário municipal de Habitação, Paulo Teixeira. A cidade foi escolhida como sede do encontro deste ano por seus projetos inovadores para a urbanização de favelas. Para a Força-Tarefa, a atual administração de São Paulo pode servir de exemplo para outros lugares do mundo onde as tentativas de melhorar as condições dos favelados malogram, seja por falta de empenho das autoridades, seja pela ineficiência dos programas ou pelo não envolvimento das comunidades. A despeito da baixa popularidade de Marta Suplicy (PT), que anda às voltas com problemas no transporte público, a prefeita tem se esforçado para melhorar a vida dos 1,16 milhão de moradores das 2.018 favelas da capital.

O plano de Marta abrange o mapeamento dessas áreas, a aprovação de plantas pela internet, a construção dos centros educacionais unificados, entre outras ações, mas começa pela regularização fundiária, uma das iniciativas que encantaram os estrangeiros. Na terça-feira 8, num evento que teve a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, começaram a ser entregues títulos de propriedade em benefício de 48 mil famílias.

São pessoas que moram há mais de cinco anos em 160 favelas e loteamentos clandestinos. Dona Naná ainda não possui o seu, mas está esperançosa. “Moro nesta casa há 14 anos. Estão dizendo aí que agora a posse vai chegar”, diz. Este é o primeiro passo para garantir os direitos básicos de quem, muitas vezes, não tem sequer endereço. Em Heliópolis, uma verdadeira cidade que abriga 100 mil habitantes em um milhão de metros quadrados, o correio não chega nas “ruelas e becos ausentes dos mapas e carentes de serviço público”, nas palavras do ministro das Cidades, Olívio Dutra. O próprio Lula define a importância de um “papelzinho”: “Sei o significado de uma pessoa receber o título e ter conta de luz, água. Pode até não ter dinheiro para pagar, mas só de ter já é um negócio… Isso se chama cidadania.”

Otimismo – O pesquisador Alfredo Stein, da Guatemala, membro da Força-Tarefa, acredita que a regularização seja um dos passos mais importantes para a urbanização. “As pessoas podem, com o título, obter créditos, fazer empréstimos e, assim, melhorar o lugar onde vivem”, diz ele, que ficou impressionado com o otimismo da comunidade de Heliópolis. “Na América Latina, a miséria é sempre a mesma. Quando entrei nos lugares mais escondidos, não sabia se estava na Argentina, no Brasil ou no Chile. Mas nunca vi tanta disposição como aqui”, conta. É o caso de dona Naná, que, mesmo com as dificuldades, conseguiu criar 18 crianças, rebentos das famílias mais pobres da favela. E hoje, depois de trabalhar a vida toda como empregada doméstica, não consegue obter a aposentadoria por falta de registro em carteira. “Minha situação sempre foi complicada, mas tenho fé, sempre tive”, diz.

Palafitas – A mesma disposição não têm os que vivem nas áreas mais insalubres. Num conjunto de casas de palafitas em Heliópolis, sobre o córrego dos Meninos, os habitantes moram, literalmente, no meio do lixo e convivem com um cano que despeja o esgoto da favela a céu aberto, dia e noite, como uma verdadeira cachoeira. A passagem dos estrangeiros chamou a atenção dos que vivem ali, especialmente de Josefa Clotilde da Silva, 39 anos. Segundo ela, depois do suicídio
do marido, há dois meses, a alimentação dos três filhos está prejudicada. Josefa diz que sonha em ser atendida pelo Renda Mínima da Prefeitura, que beneficia 3,4 mil famílias na favela. João Miranda Neto, presidente
da Unas – que reúne as associações de moradores da região –, diz que, provavelmente, Josefa não teve coragem de enfrentar a gigantesca fila para preencher a ficha do programa. “Muitos nem tentam e desanimam antes. Eles já pensam ‘ah, não vai dar certo mesmo’”, conta. João conhece bem a realidade da favela e faz a mesma constatação que os enviados da ONU: “Não adianta urbanizar sem programas sociais e de geração de renda.”

Para o argelino Farouk Tebal, é a diversidade de ações, a integração entre elas e a grandeza dos projetos que fazem de São Paulo um modelo. Outra inovação da gestão petista é a formação de conselhos nas comunidades. “É preciso ouvir os moradores para saber o que querem que seja feito”, diz Tebal. As reuniões entre os técnicos da prefeitura e os habitantes tornam o processo de urbanização mais demorado, mas os moradores preferem assim. Em Heliópolis, a derrubada de inúmeras casas para que fosse erguido o conjunto habitacional Cingapura, na gestão de Paulo Maluf (1993-1996), deixou traumas. “Muita gente pegou o fundo de garantia, fruto do trabalho de uma vida inteira, para erguer uma casinha.

Sem perguntar, a prefeitura derrubou tudo. A maioria não queria morar em prédio”, diz João, da Unas. Tebal questiona ainda a idéia de se substituir casas e barracos por prédios: “Os apartamentos prejudicam a vida social. E entre os mais pobres a comunidade é muito importante para fortalecer a luta dos moradores.” Esse tipo de pensamento já foi adotado pela gestão de Paulo Teixeira na secretaria de Habitação. “Política de habitação é novidade em São Paulo”, diz o secretário. A médio prazo, a prefeitura quer terminar as obras do Prover – Programa de Verticalização de Favelas, iniciado na gestão de Celso Pitta – porque precisa obedecer ao contrato com o BID.

Esta e outras idéias serão levadas a vários países pela Força-Tarefa, que tem como meta, até 2020, melhorar as condições de moradia de 100 milhões de pessoas no mundo. “Vou levar como lição que quando todas as esferas de poder estão comprometidas em resolver os problemas, além da própria comunidade, não há obstáculos intransponíveis”, diz Farouk Tebal. Dona Naná, como sempre, tem esperança: “A vida aqui não é fácil, mas tem melhorado muito.”