Às 16h45 da quarta-feira 9, depois de mais uma madrugada de violência varrer as ruas do Rio de Janeiro, Dagoberto da Conceição Carvalho, 51 anos, suboficial da Marinha, enterrou o filho mais velho, o soldado da PM Samir Bernardo Carvalho, 23 anos. Samir foi executado junto com o cabo André Moreira Pereira Afonso, 28 anos, no Largo de Campinho, zona norte, na quarta onda de terrorismo desencadeada por traficantes este ano, com a explosão de bombas, destruição de ônibus e fechamento à força do comércio. Há apenas um ano na PM, o soldado pretendia cursar direito e já tinha comprado uma geladeira para o casamento. A sepultura 27.041, onde foi enterrado, em uma ala reservada aos PMs, se junta a outra centena apenas naquele trecho do cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, zona oeste. “Vocês podem vir aqui amanhã e vai ter mais policial debaixo da terra”, gritava o pai. Foram enterrados 40 só nos três primeiros meses deste ano. Ex-fuzileiro, Samir costumava dizer ao pai que estava decepcionado: a maioria dos colegas de farda mal sabia atirar, treinava pouco e fazia bico para completar o soldo de R$ 700. Alguns se corrompiam. “Bandido sabe mais que eles”, dizia.

Em São Paulo, a dura rotina que massacra esse exército de homens e mulheres fardados e armados levou um homem ao desespero. “Policial honesto não tem valor em São Paulo”, desabafou o soldado Reinaldo Antônio Domingues, 33 anos, na quinta-feira 10, em frente ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista. Casado e pai de três filhos, vestido com o colete da PM, pôs fim na própria vida ao apertar o gatilho do revólver amarrado à sua mão direita. A cena dramática foi capturada por uma equipe da Rede Record e levada ao ar sem o desfecho fatal. Nos últimos quatro anos, outros 27 PMs se mataram em São Paulo. Um estudo feito pela Internacional Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), entidade internacional que estuda o stress, mostra que profissionais da área de segurança são as maiores vítimas. “Ganham mal, trabalham em situação de risco e têm medo que seus familiares sofram represálias”, explica a psiquiatra Ana Maria Rossi, presidente da entidade.

Negócios ilícitos – Nas duas cidades com maior índice de violência do País, a maioria dos homens encarregados de zelar pela segurança pública da população faz bico para sobreviver. Depois do expediente, trabalham como seguranças de empresas de transporte de valores, postos de gasolina, bancos, casas de câmbio, bingos e até de políticos e jogadores de futebol. Uma parte trabalha em negócios ilícitos. Dos 40 policiais mortos entre janeiro e março deste ano no Rio, 24 estavam fora de serviço. “Eles trabalham sozinhos e duplamente expostos”, aponta Fernando Bandeira, presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Rio,
que também faz bico como instrutor de vigilantes. “Como vamos trabalhar ganhando uma miséria e tendo traficantes como vizinhos?”, pergunta Vanderlei Ribeiro, presidente da Associação de Cabos e Soldados da
PM, revelando outra idiossincrasia do sistema. Ganhando pouco, os policiais acabam tendo de morar em favelas comandadas pelo tráfico. Nada menos do que 40% dos 33 mil policiais militares e 20% dos
11,5 mil policiais civis do Rio vivem em áreas de risco. Com medo, a maioria não anda com a carteira de policial quando está fora de serviço. “Não adianta comprar viaturas e armamentos se não investir no homem. Com salário baixo e endividado, o policial fica vulnerável à corrupção. O estômago fala mais alto”, ensina Ribeiro.

Viúva de um PM morto há duas décadas, Francisca Gomes da Silva Santos, 65 anos, presidente da Associação de Pensionistas da PM, lembra que quando seu marido subia o morro, o bandido corria. “Hoje é o contrário, o bandido caça o policial”, constata. Este ano, os dois lados entraram em um choque sem precedentes. Nunca tantos policiais e traficantes morreram em tão pouco tempo nas ruas do Rio de Janeiro. São Paulo não fica muito atrás. De janeiro a março deste ano, 40 policiais foram mortos no Rio, 21 deles no mês de março – um recorde aterrador. Em São Paulo, 21 policiais foram assassinados nos dois primeiros meses do ano. Os números saltam mês a mês. Em 2001, 91 policiais foram assassinados no Rio. Em 2002, esse contingente subiu para 170, um número 60% maior do que a centena de soldados americanos mortos em 22 dias da guerra do Iraque. No mesmo período, em São Paulo, onde a força policial é quatro vezes maior (182,8 mil contra 44,5 mil no Rio), 144 policiais tombaram. Desde 1990, 1.840 policiais foram assassinados em São Paulo, 903 deles somente nos últimos cinco anos.

“Sempre apontam o Rio como a cidade onde a polícia mais mata. Esquecem que aqui é onde a polícia mais morre”, desabafou a delegada Marina Maggessi, chefe da Inteligência da Polícia Civil do Rio. De fato, dos dois lados a ordem é atirar para matar. Segundo levantamento do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes, feito junto a “autos de resistência”, a polícia do Rio matou 944 pessoas em 2002, contra 592 mortes em 2001 e 441 em 2000. Hoje, de cada dez homicídios no Rio, um é provocado pela polícia. “Uma polícia que mata tanto vai morrer muito também”, diz a socióloga Julita Lengruber, que dirige o CESeC. “A polícia partiu para o confronto”, reconhece a policial Marina.

Conflito de jovens – Policiais e especialistas definem a guerra urbana carioca como um conflito de jovens, que morrem em número cada vez maior. De um lado, o poder público uniformizado, mal armado e violento. Do outro, o estado paralelo, bem armado e igualmente violento. Esta semana, um garoto muito franzino, mal aparentando seus 12 anos, foi escoltado até a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, no centro do Rio. Filho de uma família pobre de Campo Grande, zona oeste, foi preso depois de trocar tiros com a polícia. Sua arma: um fuzil AR-15 quase do seu tamanho, numa versão adaptada para os cada vez mais jovens ‘soldados do tráfico’ – chamada de “AR baby”. Juntou-se a outras centenas de menores “presos” no Centro de Triagem e Reabilitação, na Ilha do Governador. Desde o início do ano, 1.150 menores passaram pela delegacia, com média de 12 anos de idade, metade detida por porte ou tráfico de droga. “Hoje, quando entro em um presídio no Rio, parece que estou entrando em um abrigo de menores”, relata o historiador Marcelo Freixo, da ONG Centro de Justiça Global.

As maiores “firmas” (bocas-de-fumo) nos morros do Rio são hoje controladas por jovens que dificilmente têm mais do que 25 anos. Todos muito violentos. Cada ordem dos chefes de dentro dos presídios é vista por eles como um teste de fidelidade, principalmente depois da rebelião de Bangu 1, em 11 de setembro do ano passado, quando chefes da facção Comando Vermelho (CV) executaram rivais do Terceiro Comando (TC). “A ordem vem de dentro dos presídios, mas não é detalhada. É algo como ‘botem fogo na zona sul’. A hora que ela bate no morro, não existe controle”, conta Julita Lengruber, que dirigiu o Desipe (Departamento do Sistema Penitenciário do Rio) entre 1991 e 1994. Dentro dos presídios, os “cadeeiros”, como são chamados os presos veteranos, reconhecem que a garotada do tráfico, conhecida como “funkeiros”, está fora de controle. “Como em qualquer lugar onde tem guerra, os novos pelotões vão assumindo com gente mais jovem”, explica Marina. “É gente viciada e violenta, que sabe que vai morrer jovem e não tem nada a perder”, completa. “É uma guerra entre garotos”, resume Julita.

Os traficantes desceram de vez os morros e escolheram como alvos preferenciais ônibus – pela visibilidade que traz uma enorme carcaça
de metal em chamas –, mas também símbolos da zona sul carioca, como shoppings, restaurantes e hotéis de luxo. Executam PMs em postos de patrulhamento e nos chamados “Polígonos de Segurança”, uma invenção polêmica do governo que coloca duplas de policiais vigilantes – e expostos – debaixo de tendas. Foi assim nas madrugadas de 24 e 28 de fevereiro, 31 de março e na semana passada. Em todas essas ondas de terror, a ordem para “tocar fogo no asfalto” partiu de traficantes de dentro dos presídios. Fernandinho Beira-Mar está em Alagoas? Os celulares do presídio de Bangu 1 foram recolhidos? Não importa. “Eles mandam as ordens pelos advogados, que circulam entre as cadeias”, explica Marina Maggessi. E o que busca um traficante jogando bomba s no shopping RioSul, o maior da zona sul, ou metralhando a entrada do metrô? Mostrar força e, com isso, buscar um acordo com
o Estado, o que especialistas dizem que já ocorreu em passado recente. “Quem não quer acordo agora é o Estado, que partiu para o enfrentamento”, diz Julita Lengruber.

“Não vamos nos intimidar, não vamos aceitar ameaças e não vamos conversar com bandidos”, garantiu a governadora Rosinha Matheus na quarta-feira 9, depois de se reunir com a cúpula da polícia. Horas antes, uma nova onda de terror varreu o Rio: três pessoas morreram, nove ônibus e um carro foram incendiados, inclusive na avenida Brasil – uma das principais vias de acesso do Rio –, e uma granada explodiu em frente ao RioSul. Um dos últimos pontos ainda intocados do circuito do terror, o Leblon, na zona sul, foi atacado no dia seguinte. Duas bombas de fabricação caseira explodiram destruindo o vidro da fachada de um laboratório e da pizzaria Fratelli. Parte do comércio em Copacabana e Ipanema foi fechado em “luto” pela morte do traficante Jurandir Dias do Nascimento, o Caju, apontado como responsável pelos atentados ao RioSul e ao Hotel Meridien, no Leme, em 31 de março.

Tortura – A última onda de ataques pode ter partido de Bangu V, supostamente como resposta a uma sessão de espancamento que teria ocorrido ali há duas semanas, promovida por agentes do serviço de operações externas do Desipe. “Houve um nível de tortura coletiva absurdo”, afirma Marcelo Freixo, presidente do Conselho da Comunidade do Rio, órgão da execução penal que fiscaliza o sistema penitenciário. O caso está sendo investigado pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. O governo do Estado nega a tortura, mas confirma o endurecimento. “Podemos perder na imagem, mas os bandidos podem perder com a vida”, discursou o secretário de Segurança Pública, coronel Josias Quintal, que mandou restringir as visitas aos presos no complexo penitenciário de Bangu. Logo surgiram panfletos, assinados pelo CV, ameaçando retaliar.

“Eu estaria preocupado se eles estivessem aplaudindo”, ironiza um dos “duros” da política de segurança pública do governo, o promotor Astério Pereira dos Santos. Secretário de Administração Penitenciária, Astério cuida desde o início do ano dos 18 mil presos no Estado – 10 mil só em Bangu. Uma de suas primeiras medidas foi isolar por 180 dias uma das quatro galerias de Bangu 1, onde estão nove chefes do CV, entre eles Isaías do Borel, Marquinhos VP, e Jorge Alexandre Cândido Maria, o Sombra. Os presos foram obrigados a usar uniforme, que agora será estendido a todo o complexo, só podem comer o “rango” da casa e têm de escolher um único advogado. Além do bloqueador de celular em Bangu 1, já foram abertas licitações para instalar o equipamento em Bangu 2, 3 e 4. Será erguido um cinturão de segurança em torno do presídio, além da compra de câmeras de vídeo, raio-X e detetores de metal. A OAB já recebeu uma relação de 19 advogados suspeitos, que devem ser vetados no complexo. “Estamos fazendo de tudo para acabar com o elo entre o chefe preso e sua base”, relata Astério.

Num sinal de que a guerra está longe do fim, a Polícia Federal e a Polícia Civil fizeram na quinta-feira 10 uma apreensão gigantesca de armas. Um caminhão foi interceptado na avenida Brasil com 20 mil cartuchos para fuzil 7.62 e 50 granadas defensivas FMK2. O carregamento, que vinha do Paraguai, abasteceria o Complexo da Maré, área dominada por Paulo Cesar da Silva Santos, o Linho. Do outro lado do front, o nosso, a verdade de um pai vale mais do que mil imagens. Diante de mais de 200 PMs, que foram acompanhar o enterro de seu filho Samir, Dagoberto, com a experiência de três décadas como fuzileiro naval, desafiava: “Sei que muitos de vocês não sabem nem manusear uma arma. Trago uma arma aqui e quero ver quantos sabem desmontar”, dizia. O silêncio constrangedor só foi interrompido pela salva de três tiros da Guarda de Honra da PM. Com balas de festim.