Seria recomendável retirar mulheres e crianças da sala. Vem aí o anticristo. Mas finda a leitura e dissipada a nuvem ameaçadora de Diário de um fescenino (Companhia das Letras, 256 págs., R$ 33,50), o mais novo livro de Rubem Fonseca, o que sobra é o texto de um escritor vigoroso e disposto a enfrentar desafios e novidades, num volume que abre uma coleção especializada em literatura de provocação, batizada informalmente de Safadas. São momentos de reflexão do mineiro radicado no Rio de Janeiro, que funcionam como uma espécie de acerto de contas com seu público, já que discute a relação autor-leitor. O enredo é simples. Rufus – um libertino metido a detetive que se envolve num crime – é escritor de cinco livros, mas fez sucesso apenas com o primeiro. Está se esfalfando para escrever seu bildungsroman – romance de formação que descreve o rito de passagem para a fase adulta.
Para não enlouquecer, o homem resolve manter um diário que não se resume à mistura da descrição do cotidiano com o monólogo interior, recurso típico do gênero.

Rufus começa no dia 1º de janeiro analisando a função de um diário em si, sua perspectiva histórica, e, pouco a pouco, sem a menor preocupação com a data que encima os capítulos, vai introduzindo as personagens. Os fatos raramente ocorrem no dia em que foram escritos. Continuamente, ele interrompe tudo para se ocupar de reminiscências. O maior dos diálogos acontece no interior de uma clínica psiquiátrica, na qual Rufus abandona o estilo de “falar com os botões”, à maneira de Machado de Assis, e declara que vai escrever seu diário como bem entende. Na primeira parte da história, o literato se relaciona com Henriette, uma paulista que quer um filho – a história se passa no Rio –, e com a atriz Lucia. Na segunda, encontra-se furtivamente com Clorinda, uma fã que conheceu na rua, e com Virna, a “irmãe” dela. Isso mesmo. Irmã e mãe. Ou seja, o livro pode ser considerado perfeito para inaugurar uma coleção especializada em obras provocativas e irreverentes de escritores idem, que já têm títulos agendados pela editora até 2005.

A série deve incluir nomes como os de Moacyr Scliar, Philip Roth, Reinaldo de Moraes e Henry Miller – com Sexus, Nexus e Plexus, é claro. Dentro do espírito adequadamente obsceno e licencioso, fescenino até a medula, o Rufus de Fonseca mente, embroma, engana, enrola e traça todo mundo, tendo o cuidado de dourar a pílula com copiosas citações. Afinal, estudou letras. Portanto, García Lorca aquece a cama, Fernando Pessoa assessora a paixão, Oscar Wilde auxilia na maquiagem. É neste colóquio entre o literato confessional e o incauto leitor fonsequiano que se baseia a estrutura real do livro. Como já se disse, a história de Rufus é banal. Mas a luta do escritor para ser compreendido é tão digna e hercúlea quanto a do “mero” criador. Das páginas de seu diário o protagonista passa a acusar seus possíveis leitores de síndromes – igualmente literárias. Síndrome de Bulhão Pato, nome de um escritor que se sentiu caricaturado em Os maias, de Eça de Queiroz; síndrome de Bartleby, referência ao escriturário personagem de Herman Melville, que faz com que os escritores renunciem à literatura; e, finalmente, síndrome de Zuckerman, escritor protagonista de vários livros de Philip Roth, que frequentemente era confundido com os tipos que criava. Seguindo o raciocínio de Rufus, as críticas a Rubem Fonseca devido ao encolhimento literário de seu livro de 2002, Pequenas criaturas, faria dele um Zuckerman com tendência a Bartleby. E os leitores, num círculo fechado e perfeito, seriam todos Bulhão Pato.