Nós não simpatizamos com aqueles que utilizam sua autoridade de governo de maneira a satisfazer seus interesses pessoais e ambições. Nós devemos ensinar os latino-americanos a escolher as pessoas certas.” Esta declaração, cujo sentido poderia ser totalmente endossado pelo atual ocupante da Casa Branca, o caubói George W. Bush, foi feita no início do século passado. Um outro presidente republicano, igualmente belicoso, poderia tê-la pronunciado: Theodore Roosevelt (1901-1908), aquele do Big Stick (grande porrete), o primeiro a brandir explicitamente o direito de Tio Sam intervir no resto do mundo para defender seus interesses nacionais. Mas aquela frase foi proferida justamente pelo maior adversário ideológio de Roosevelt e seu sucessor na Casa Branca, o presidente democrata Woodrow Wilson (1912-1920), um intelectual de Princeton
que desprezava a realpolitik e, messianicamente, acreditava que os Estados Unidos tinham o dever moral de tornar o mundo um “lugar
seguro para a democracia”. Em abril de 1914, o presidente Wilson despachava os marines para o México, então convulsionado por uma revolução camponesa. Em 1917, em nome de princípios universais,
Wilson colocava os EUA na Primeira Guerra Mundial, criando as bases
do papel de Tio Sam como polícia do mundo.

Por essas e por outras é que muitos sustentam a idéia de que as duas faces da política externa americana – o frio realismo da defesa dos interesses nacionais e o globalismo messiânico – são complementares em vez de excludentes, como salientou o ex-secretário de Estado Henry Kissinger. O assunto voltou à tona agora, com o lançamento da Doutrina Bush. Trata-se de um documento de 33 páginas enviado nesta semana ao Congresso, que define a nova estratégia global do governo americano.

Embora alguns analistas considerem a Doutrina Bush “uma mudança radical nas formulações adotadas por Teddy Roosevelt e Wilson, na busca de aliados”, como disse a ISTOÉ o coronel Amerino Raposo, do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos, outros acreditam que a nova formulação é uma tentativa de fundir o realismo duro de Roosevelt com o moralismo salvacionista de Wilson. Senão, vejamos: na melhor tradição do Big Stick, o documento prevê que os EUA devem enfatizar “ações preventivas” contra Estados hostis e/ou grupos terroristas. A Casa Branca também está determinada a não permitir que qualquer potência diminua a enorme dianteira militar assumida pelos EUA desde a queda da URSS. “Este é o item mais grave, que pretende congelar o poder militar de todos os demais países para que os EUA mantenham sua superioridade”, diz o cientista político Antônio Carlos Peixoto, da Universidade do Rio de Janeiro. Mas, em homenagem aos princípios wilsonianos, a nova doutrina diz que Tio Sam deve usar seu enorme poderio militar e econômico para encorajar “sociedades livres e abertas em lugar de apenas buscar vantagens unilaterais”. Na mesma linha, o documento afirma que a diplomacia e a ajuda econômica a outros países devem ser utilizadas como armas na luta entre valores e idéias concorrentes, incluindo a “batalha pelo futuro do mundo mulçulmano”.

“O Partido Republicano no poder adotou o velho ideário do ‘destino manifesto’: baseado no espírito dos fundadores do país, que consideravam os EUA uma nação privilegiada, eleita por Deus, em condições de conduzir o mundo no caminho do bem”, analisa o professor Clóvis Brigagão, da Universidade Candido Mendes (Rio). “Com base nesse sentimento comum, uns defendiam o engajamento americano no mundo, enquanto outros preferiam o isolacionismo, baseado em um critério moral e superior, que justificava a contaminação contra o mal. Mas a Doutrina Bush, mais que isolacionista, é unilateralista”, conclui Brigagão.

A nova estratégia do império americano representa também o último prego no caixão das teorias que nortearam todo o período da guerra
fria e a bipolaridade EUA/URSS: a idéia de dissuasão e contenção, apoiada no “equilíbrio do terror nuclear”. Com o agravante de que,
como não são interesses que estão em jogo, mas princípios, não há
o que negociar: o inimigo tem que ser aniquilado. A ironia fica por
conta de que Saddam Hussein, o vilão da nova ordem mundial de
Bush pai, é o candidato natural a se tornar a primeira vítima da Doutrina Bush filho. E os demais integrantes do “eixo do mal” – Coréia do Norte,
Irã, Líbia, Síria e Cuba – que se cuidem.

Os democratas, que até agora vinham se mantendo acovardados
perante o discurso belicoso de George W. Bush contra o Iraque, finalmente começaram a espernear. E não apenas contra os sinais
de guerra contra Bagdá. A principal reação veio justamente de um
líder outrora tido, em termos de Defesa, como um dos “falcões” do
Partido Democrata: o ex-vice-presidente e ex-candidato à Casa Branca Al Gore. Na segunda-feira 23, em discurso no Commonwealth Club,
em San Francisco (Califórnia), Gore disse que a atual administração,
com sua obsessão de derrubar Saddam Hussein, coloca a luta contra
o terrorismo internacional em segundo plano. “Depois do 11 de setembro, dispúnhamos de um enorme caudal de simpatia, boa vontade e apoio no resto do mundo. Em um ano, desperdiçamos tudo isso e o substituímos por medo, ansiedade e incerteza, não pelo que os terroristas podem fazer, mas pelo que nós possamos fazer”, destacou.

Depois, Gore atacou a Doutrina Bush: “Esta estratégia não somente celebra a força americana, como também glorifica a idéia de dominação. Se o que os EUA encarnam no mundo é uma liderança em uma associação de iguais, nossos amigos serão legiões. Se o que encarnamos perante
o mundo é um império, nossos inimigos serão as legiões”, lembrou
o ex-candidato, mencionando as legiões do Império Romano. Depois,
Gore fez uma advertência: “Se triunfarmos numa guerra contra um exército debilitado, como o iraquiano, e abandonarmos rapidamente
esta nação, como o presidente Bush fez com o Afeganistão, o caos resultante da vitória pode nos colocar riscos muito maiores do que representa hoje Saddam Hussein.”

Artefatos nucleares – Mas o Pentágono não vai esperar sequer a aprovação da nova doutrina para colocá-la em prática. Na quinta-feira 26, dois dias depois que o premiê britânico, Tony Blair, revelou “provas” de que Bagdá continua fabricando armas de destruição em massa, os EUA rascunharam uma dura resolução sobre o Iraque a ser submetida ao Conselho de Segurança da ONU. “Haverá pesadas consequências para o Iraque se o país continuar a desafiar a ONU”, disse o secretário de Estado, Colin Powell. Vai ser difícil obter a aprovação dos outros três membros do Conselho – China, Rússia e França –, mas Bush atacará Bagdá de qualquer forma, com aliados ou sozinho. Só que desta vez uma guerra contra o Iraque poderia envolver todo o Oriente Médio, com o risco do uso de artefatos nucleares, como advertiu o ex-chefe dos inspetores da ONU em Bagdá Richard Butler. Então, a “polícia do mundo” colocará à prova sua capacidade de manter a ordem mundial. Certamente com mais porretadas do que afagos.