A primavera começou quente no mercado financeiro. Real e peso argentino enfim bateram na mesma cotação de dólar. Começou segunda-feira 23: por volta de meio-dia, aqui o dólar era cotado a R$ 3,55 para compra e venda; lá, a
3,53 pesos para compra e 3,61 para venda. Na terça, 3,69 pesos, 3,78 reais,
e até quarta-feira, apesar da leve baixa,
o Brasil ganhava esse jogo que ninguém quer ganhar. Para a platéia, a peleja perversa dos especuladores ganhou,
com a equiparação do real ao peso,
uma “arma nuclear” em sua guerrilha
para atribuir a disparada no Brasil ao
fato de Lula, o candidato do PT à Presidência, que está com 44%
da preferência dos eleitores, ter possibilidade de ganhar a eleição no primeiro turno. Nos bastidores, porém, os especuladores sabem que não
é isso. Na terça-feira 24, o dólar chegou a R$ 3,82 (e fechou a R$ 3,78) porque, no dia seguinte, venceria um grande número de títulos da dívida pública equivalente a US$ 1,5 bilhão. A especulação faz sentido aí: quanto maior o valor em dólar, maior a importância que receberão
os bancos possuidores de títulos.

Na quinta-feira 26, a mesma história: a moeda voltou a subir
(às 12h30 era vendida por R$ 3,752 (compra a R$ 3,745), mantendo-se 2,79% abaixo da cotação do peso argentino em relação à moeda americana (na mesma hora, o dólar valia 3,65 pesos), em razão,
desta vez, do vencimento de uma dívida cambial de US$ 1,25 bilhão,
na terça-feira 1º de outubro.

Fazer vingar a “versão-Lula” é difícil até para o insuspeito professor da Universidade de Columbia Albert Fishlow. “O stress dos mercados nos últimos dias tem sido exagerado”, avaliou Fishlow. “Os mercados exageram de tempos em tempos. E esse é um período de claro exagero.” Também o candidato do PSDB ao governo de São Paulo, Geraldo Alckmin, acredita que as eleições não devem ser argumento para explicar a turbulência nos mercados. “É inegável que a eleição acaba sendo um desses vários fatores, mas de maneira injustificada. Não há nenhuma razão para o dólar parar na altura em que parou. Acho que há uma enorme especulação, totalmente descabida”, disse ele. Para o País crescer, afirma Alckmin, precisa de estabilidade política, que se constrói com eleições periódicas, independentemente do resultado eleitoral. “É pura especulação”, replica o empresário Ivo Rosset, presidente da Valisère. “O barril de petróleo, por exemplo, fechou em Nova York a US$ 30,68 na segunda-feira. Vão dizer que é culpa de Lula?”

A ameaça Bush – Alguns analistas são unânimes em atribuir grande
parte desse vendaval à instabilidade do cenário internacional. As principais Bolsas da Europa fecharam o pregão da segunda-feira com fortes baixas, influenciadas pelo nervosismo do mercado americano
e também pelas desvairadas ameaças de um ataque militar dos EUA contra o Iraque. Bush, o presidente americano, está com a macaca
e o mundo treme com sua fúria belicosa. O economista Guido Mantega, principal assessor econômico do PT, define o comportamento do mercado como “terrorismo eleitoral”. “A alta do dólar está mais relacionada com
a instabilidade do cenário internacional do que com o processo eleitoral no País. Neste momento, as eleições contribuem apenas com uma pequena parcela para o aumento do dólar”, diz ele.

No outro lado da arquibancada, o economista Delfim Netto dá um show de humor e inteligência. No programa Delfim Responde, da UOL, ele disse ao jornalista Paulo Henrique Amorim que os tucanos ficaram nervosos com a possibilidade de Lula ganhar no primeiro turno e “isso pôs a tucanada toda espavorida a voar de um lado para o outro. O mercado respondeu com a mesma vibração. O mercado não pode ver tucano voar…” Ele não falou em quem vai votar, mas afirmou que o PT é o único partido que pode fazer o percurso da social-democracia européia.

A Argentina entra nessa história pelas mãos do candidato José Serra, que até semanas atrás dizia que o Brasil, numa vitória de Lula, poderia se converter numa Argentina. Não é impossível, mas é bem difícil. A Argentina atravessa a pior crise financeira de sua história: deu calote em dívidas, quebrou empresas, condenou à pobreza 50% de sua população, espalhou a miséria. A última do FMI jogou o presidente argentino, Eduardo Duhalde, nas cordas. Seus burocratas disseram à imprensa que consideram praticamente inviável a possibilidade de os candidatos assinarem um acordo prévio com o Fundo, ou até mesmo se comprometerem publicamente com as exigências da instituição, como aconteceu no Brasil (a Argentina tem eleições marcadas para março do ano que vem). O que eles não falaram para Duhalde é que os candidatos brasileiros toparam “em princípio” conversar com o FMI. O nhenhenhém da instituição só tem servido para reativar os apagões e panelaços (o mais recente aconteceu na terça-feira 24) e minar a paciência de frade do ministro da Economia, Roberto Lavagna. Com o legítimo e admirável sangue argentino, ele aproveitou uma entrevista concedida aos jornalistas estrangeiros para fazer o que a empáfia das autoridades econômicas brasileiras nunca permitiu: desceu a ripa no Fundo. “O último acordo do FMI com a Argentina só serviu para financiar a fuga de capitais e aprofundar a recessão que terminou no colapso de 2001”, disse o ministro, acrescentando que “a primeira responsabilidade” pela crise argentina foi do próprio país. “Mas durante todos estes anos (a partir de 1994), com certa cegueira, os organismos internacionais continuaram a apoiar o modelo que conduziu à quebra da Argentina.”

Por conta própria, o país dá sinais de melhora: a inflação está abaixo
de 2%, quando em abril se encontrava em 10,4%; de abril a agosto a indústria cresceu 6,7%; o Banco Central deixou de perder reservas no mercado cambial e tem aumentado as reservas em mais de US$ 114 milhões; as taxas de juros, que há quatro meses estavam em 200%,
hoje estão entre 30% e 40%; o dólar futuro para os contratos até o
final do ano não passam de 3,80 pesos, ante uma projeção de 8 a 10 pesos em abril; pela primeira vez, desde 1989, o PIB do segundo trimestre é positivo em 0,9%, comparado com o trimestre anterior. “Um acordo
com o FMI tornaria a situação mais fácil, mas sem esse entendimento
o mundo não acabará”, disse o ministro.

Enquanto isso, no Brasil, os especuladores se esbaldam. O balanço
dos investimentos estrangeiros na Bolsa de Valores de São Paulo
nos primeiros 20 dias de setembro revela saída de capital externo
de R$ 191.235.555, resultado de compras de ações no valor de
R$ 1.483.316.806 e vendas de R$ 1.675.552.061. No acumulado
do ano, até o pregão do dia 20 de setembro, o saldo está negativo
em R$ 1.843.902.525. Essa dinheirama toda foi embora bem antes
da arrancada de Lula.