milionário xiita Ahmad Chalabi, líder do Congresso Nacional Iraquiano (CNI), o principal movimento de oposição no exílio, partiu de Londres há dez dias e, sob proteção das tropas americanas, desembarcou em Al Nassíria (sul do Iraque) para participar, com outros líderes oposicionistas, das negociações sobre a reconstrução do Iraque pós-Saddam. Mal teve tempo de se instalar e Chalabi, queridinho do secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, já disparava críticas às primeiras iniciativas dos americanos, que escolheram 43 políticos oposicionistas iraquianos para discutir o futuro do Iraque. A composição pretendida por Tio Sam peca, segundo o empresário, por “excesso de líderes tribais”, sendo que o Iraque atual é uma sociedade majoritariamente urbana. “A composição parece-se mais com uma Arca de Noé”, ironizou Chalabi.

Na verdade, o epíteto caberia muito bem para definir a própria oposição iraquiana, um amálgama multifacetado, formada por grupos divididos por etnias, facções religiosas e políticas, rixas e traições e unidos unicamente pelo ódio a Saddam Hussein. Muitos, como Chalabi, são velhos opositores do regime do Partido Baath; outros, como integrantes de minorias ou maiorias étnicas, sofreram duras perseguições. Finalmente, como em toda a ditadura, o arco de descontentes abriga também os ratos, militares ou civis, que pularam fora do barco governista. No total, são cerca de 100 organizações, mas apenas meia dúzia delas têm expressão política.

Os curdos, que representam 20% da população do Iraque, têm a mais antiga agremiação rebelde, o Partido Democrático Curdo (PDC), fundado em 1946 e atualmente dirigido por Massoud Barzani. Conta com uma razoável força militar, cerca de 20 mil peshmergas (guerrilheiros) em atividade e tem força sobretudo nas áreas rurais. Durante a guerra Irã-Iraque (1980-88), o PDC apoiou Teerã contra Saddam, que em represália massacrou civis curdos com armas químicas. O outro partido curdo, a União Patriótica do Curdistão (UPC), de Jalal Talabani, é uma dissidência do PDC, fundada em 1976. Tem 15 mil peshmergas e é forte nas cidades. Entre os xiitas, que representam 60% da população iraquiana, a principal força é o Conselho Supremo da Revolução Islâmica (CSRI), fundado em 1982 e liderado por Muhammad Bakr al-Hakim. Esse grupo está exilado no Irã e possui uma força estimada em dez mil homens.

Já o Congresso Nacional Iraquiano (CNI), de Chalabi, foi fundado em 1992 com o apoio da CIA, na esteira da repressão que Saddam promoveu contra os curdos e os xiitas logo depois da primeira guerra do Golfo. Em fevereiro de 1991, o então presidente George Bush (pai), depois de expulsar as tropas iraquianas do Kuait e decretar um cessar-fogo, conclamou “as Forças Armadas e o povo iraquianos a assumir o controle da situação e derrubar Saddam Hussein”. A revolta eclodiu, de forma espontânea no sul xiita, mas mais organizada no norte curdo. Mas os soldados americanos não só não apoiaram os insurgentes como negaram-lhes acesso a armamento e também permitiram que as tropas do ditador sufocassem a rebelião. “A suprema ironia é que Bush, na tentativa de promover um golpe (com um chamado à ação), acabou encorajando uma rebelião que evitou o golpe que ele mesmo desejava”, escreveram os jornalistas Andrew e Patrick Cockburn no livro Out of the Ashes.

O CNI tentaria outra rebelião em 1995, em coordenação com a CIA, com o PDC e a UPC. Mas os estrategistas do Departamento de Estado puxaram o tapete na última hora. O golpe fracassou e centenas de rebeldes foram executados. Segundo o escritor Milan Rai, autor do livro War Plan Iraq, os EUA preferiam trabalhar com uma outra criatura deles, o Acordo Nacional Iraquiano (ANI), um agrupamento formalmente abrigado no CNI, mas integrado por oficiais e ex-agentes iraquianos sunitas. Fundado em 1990 com apoio americano, saudita, kuaitiano e britânico, o ANI é curiosamente liderado por um xiita, Ayadi Allawi, ex-chefe dos serviços de inteligência iraquiano e colaborador do MI-6 (serviço secreto britânico). Segundo Rai, antes da Doutrina Bush, os EUA pensavam no ANI como o instrumento para se encontrar um “homem no cavalo branco”, que liderasse uma rebelião armada contra Saddam e instaurasse um governo pró-americano.

Apesar desse caldo de cultura, muita gente na oposição está otimista
em relação ao futuro do Iraque. “Não contemplo uma balcanização
do país. É claro que existem várias posições conflitantes na oposição,
mas acima de tudo existe um sentimento de nacionalidade. Além disso,
a falta de discordância pela imposição de uma única vertente política
era exatamente o que fazia Saddam Hussein. E todos sabemos que essa política foi desastrosa”, disse a ISTOÉ o dr. Said Hakki, 68 anos, integrante do CNI e apontado como possível ministro da Saúde num
futuro governo do Iraque. Mas a história mostra que muito mais
hercúlea do que derrubar um tirano é a tarefa de unir povos diversos
num Estado democrático unificado.