A nossa casa era miserável. Por que eles a bombardearam? Quero saber se os médicos vão me dar braços novos. Se eu não recuperar as minhas mãos, vou me matar.” O comovente relato é de um menino de 12 anos, Ali Ismael Abbas, que se tornou símbolo das atrocidades que vêm sendo cometidas contra a população iraquiana nesta guerra. São inúmeros casos de civis feridos ou mortos em condições de pura barbárie. A casa de Ali no bairro de Diasla, na zona leste de Bagdá, foi drasticamente destruída pelos bombardeios dos americanos. Só sobrou ele para contar a história. “Era meia-noite quando um míssil caiu sobre nós. O meu pai, a minha mãe e o meu irmão morreram. A minha mãe estava grávida de cinco meses”, relatou Ali no leito do hospital Kindi, um dos principais de Bagdá.

Por trás das câmeras que mostram iraquianos jubilosos com o fim da ditadura, existe uma realidade cruel pouco registrada pelas lentes de jornalistas estrangeiros, principalmente ocidentais. Nos corredores dos hospitais, crianças e adultos feridos se amontoam. Médicos exaustos correm de um lado para o outro. “Não há ambulâncias suficientes e caminhões estão sendo usados para transportar os feridos”, afirmou a ISTOÉ Gérard Peytrignet, do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). O médico Osama Al-Douleini, que vivenciou a guerra do Golfo (1991) e o conflito do Irã-Iraque (1980-88), foi mais longe. “Exerço essa profissão há 25 anos e posso dizer que esta é a pior guerra que já vi em termos de quantidade de vítimas e de ferimentos mortais”, afirmou.º “Estamos diante de uma grande catástrofe, que se deve, sobretudo, ao fato de terem alvejado uma grande quantidade de civis”, continuou.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), apenas na capital, Bagdá, cerca de cem pessoas são feridas diariamente. “O menino Ali se transformou em um caso internacional, mas há pelo menos um Ali em cada hospital”, afirmou o chefe de cirurgia Hamed Aireg, ao se referir às crianças feridas. Em Bagdá existem 20 hospitais civis, mas apenas cinco funcionam a todo vapor, com uma enorme carência de pessoal, medicamentos e equipamentos médicos. Gente gritando em macas no hall dos hospitais tornou-se cena rotineira. Pela falta de medicamentos, alguns cirurgiões estão usando analgésicos no lugar de anestésicos, como a morfina. Não há tempo nem para retirar os mortos. No mesmo dia em que Ali foi operado, os corpos de uma menina de 12 anos e de seu irmãozinho de cinco aguardavam para ser levados. Um vizinho identificou a menina como Noor Sabah. Quando os corpos deixaram o hospital, nem as enfermeiras resistiram e caíram no choro.

Os americanos chegaram e tomaram a capital, mas a indignação de Ali ainda ressoa: “Por que nós?” As agências humanitárias desistiram de contar os mortos e feridos. As Nações Unidas contabilizam mais de mil mortos, só nos últimos dias, mas não há como obter um número preciso de vítimas. Exaustos, médicos e enfermeiros não têm tempo para lastimar. O cirurgião Ali Samain trabalha no hospital Kindi com apenas 20% de sua equipe. Nas cirurgias, para economizar água, as toalhas não chegam a ser lavadas. E os civis não param de chegar, esfacelados, com graves queimaduras, fraturas. “Esta guerra é bem mais destruidora do que todas as precedentes; no passado, as armas pareciam causar casos de invalidez, mas agora elas matam mais”, afirmou o médico Sadek Al-Moukhatar. “A guerra deveria ser conduzida contra os militares. A América está matando civis”, continuou o médico. Na quinta-feira 10, fuzileiros americanos, temendo um ataque suicida, mataram cinco pessoas, entre elas uma criança de seis anos.

Jornalistas alvejados – Entre os civis mortos estão os jornalistas, vítimas de uma estupidez dos soldados americanos. Na terça-feira 8, raiva e dor tomaram conta do hotel Palestine, no centro de Bagdá. O cinegrafista da agência Reuters Taras Protssyuk foi atingindo na cabeça e no abdômen por um tiro de um tanque americano enquanto filmava as tropas americanas no outro lado do rio Tigre. O disparo matou Taras e o colega espanhol José Cuoso, e ainda feriu mais três jornalistas. A justificativa dos americanos foi de que havia franco-atiradores no hotel que hospeda a imprensa estrangeira. Mas um vídeo do canal francês France 3 registrou a cena. O tanque gira na direção do hotel. O soldado pára, mira e dispara. “É mentira que estavam atrás de um franco-atirador. Vimos o tanque apontar para nós, mas continuamos a filmar. Não pensamos que fosse atirar”, disse o jornalista da Televisión Nacional de Chile, Santiago Pavlovic. No dia anterior, um bombardeio americano matou o jordaniano Tarek Ayub, correspondente da tevê árabe Al-Jazira, acusada pelos anglo-americanos de fazer propaganda pró-Iraque. O escritório da tevê em Bagdá foi atingido por um míssil. “A morte dos jornalistas (da Al-Jazira, da Reuters e da Telecinco) é um ato selvagem, é um crime de guerra cometido deliberadamente”, afirmou o chefe da Al-Jazira, Hussein Abdel Ghani. Em protesto, na Espanha, jornalistas boicotaram uma coletiva do primeiro-ministro espanhol José María Aznar, entusiasta da invasão do Iraque.

Depois do colapso do regime de Saddam Hussein, o caos toma conta do Iraque. Com um vácuo no poder, a instabilidade e a insegurança se instalam e dificultam o trabalho das agências humanitárias. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) suspendeu suas atividades na capital na quinta-feira 9, depois da morte de um dos seus delegados, o canadense Vatche Arslanian. Os saques se multiplicam de norte a sul do país e não se restringem aos suntuosos palácios de Saddam e sua laia, mas acontecem até nos mais necessitados hospitais. Levavam de tudo: macas, equipamento médico e tudo o que encontram pela frente. Os iraquianos invadiram delegacias policiais, universidades e até a sede do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em Bagdá, levando fotos de crianças doentes. Os marines americanos fecharam os olhos. “As forças de coalizão parecem completamente incapazes de impedir os saques ou impor qualquer tipo de controle agora que dominam as ruas. Esta inanição das forças ocupantes é uma violação da Convenção de Genebra”, afirmou a porta-voz da coordenação de ajuda humanitária da ONU no Iraque, Veronique Traveau.

No sul, na fronteira com o Kuait, durante dias caminhões do Unicef carregados de medicamentos e alimentos ficaram impedidos de locomoção em razão dos combates entre anglo-americanos e soldados iraquianos. Carentes, esfomeados, os iraquianos estão atacando os comboios de ajuda humanitária. O Unicef alerta que apenas os homens mais robustos levam os sacos de comida, enquanto que crianças e mulheres ficam a ver navios. A desnutrição que atinge a maior parte da população iraquiana agora tende a aumentar. “Houve um ataque ontem em Basra a um comboio que levava mantimentos. Antes da guerra, 60% da população (16 milhões de habitantes) era dependente de ajuda humanitária para sobreviver. Se não conseguirmos reiniciar nosso trabalho imediatamente, serão 100% da população que precisarão de nossa ajuda, porque o estoque de comida na casa dos iraquianos vai acabar”, afirmou por telefone a ISTOÉ Patrick Nicholson, da Caritas Iraque. Nicholson visitou várias cidades no sul do Iraque nos últimos dias. Ele contou que, por falta de medicamentos, médicos de Umm Qasar fizeram greve. “Eu já estive no Afeganistão, em Angola e vejo que a situação aqui é muito difícil. São multidões desesperadas”, continuou. As cidades iraquianas têm a mesma necessidade: água potável. “Quando falta água, as pessoas bebem água dos rios que recebem os esgotos e o risco de contaminação aumenta”, afirmou Alex Renton, da organização humanitária Oxfam. Já são inúmeros os casos de crianças com diarréia e cólera. Os iraquianos mal se recuperaram do impacto da primeira guerra da Golfo e de 12 anos de sanções econômicas e enfrentam este infortúnio. Bem-vinda, Pax americana, o trabalho vai ser razoável.