Mais uma imagem que vale as proverbiais mil palavras: uma foto que correu o mundo na semana passada mostra marines americanos refestelados nos sofás de um salão do principal palácio presidencial de Saddam Hussein em Bagdá, capital do Iraque. Garante-se também que a mesma turma testou, a ponto de sobrecarga, os vasos sanitários de ouro no toalete do mesmo imóvel. Atitude justificável, já que os rapazes da Primeira Divisão Expedicionária de Fuzileiros Navais correram pelo deserto durante duas semanas, sem tempo de parada suficiente para cumprir suas necessidades mais básicas. Agora, aos vencedores, as manilhas de ouro pertencem. Novamente, uma imagem poderosa: com as tropas americanas finalmente ocupando Bagdá, o fim do regime de Saddam Hussein foi simbolizado pela derrubada de uma gigantesca estátua do ditador na praça Al Firdus (Paraíso, em árabe), no final da tarde de quarta-feira 9, com a ajuda de um blindado americano. À euforia popular com a queda da ditadura seguiram-se o caos e a desordem na capital e em outras cidades iraquianas. E as tropas anglo-americanas, que nada faziam para impedir os saques, ainda estavam às voltas com persistentes focos de resistência em Bagdá. Apenas no norte, onde as milícias curdas, apoiadas por tropas americanas, tomaram Kirkuk e Mosul, a ordem foi mantida. E, até sexta-feira 11, não havia sinais do suposto arsenal de armas de destruição em massa de Saddam – pretexto para a invasão.

O fuzileiro naval Edward Chin, da primeira geração de americanos nascidos de uma família de imigrantes birmaneses no Brooklyn nova-iorquino, passou o laço no pescoço da estátua de 12 metros de Saddam e cobriu sua face com a stars and strips, mas seus colegas da Primeira Divisão Expedicionária ainda sofriam na pele os rigores de uma guerra
que não termina apenas com deposições de esfinges. O chumbo caía
com festividades na praça e chovia também nos arrabaldes. Principalmente na chamada “Cidade Saddam”, o aglomerado caótico
de casas e vielas na parte Leste de Bagdá. Esperava-se que ali os marines fossem ter menos dificuldades para se estabelecerem. Afinal, tratava-se de território onde vive a maioria étnica xiita, pobre e maltratada pelo regime. O problema é que o traçado irregular daquela
que é na verdade uma enorme favela, favorece o trabalho dos fedayin,
os paramilitares que ainda resistem no país. Na quarta-feira 10, um soldado americano morreu e 20 ficaram feridos numa emboscada no lugar, sob fogo de franco-atirador. No mesmo dia, um atentado suicida contra um posto de controle matou vários marines.

A guerra, como se viu, ainda não acabou. O poderio aéreo americano não terá condições de aniquilar esses focos
de oposição sem causar devastação na população. Talvez por isso, o Pentágono alertava que ainda haveria muita guerra pela frente. De todo modo, em Washington o preparo do pós-guerra já era anunciado com o brado de quem toma posse de
um latifúndio. E a vontade dos novos senhorios é de administrar a propriedade manu militari por tempo indeterminado, tendo como auxílio um punhado
de empresas americanas.

Na reunião de cúpula entre o presidente George W. Bush e o primeiro-ministro britânico Tony Blair, em Belfast (Irlanda do Norte), ouviu-se do americano um muxoxo sobre uma participação da Organização das Nações Unidas no pós-guerra. Mas a sugestão soou claramente como uma deferência ao anfitrião britânico, que vem insistindo nesta opção a fim de tentar remendar os laços diplomáticos esfarrapados no pré-guerra. Pouca gente em Washington, especialmente aqueles que ocupam os labirintos do poder no Pentágono, acredita que a atuação da ONU terá caráter mais do que perfunctório neste processo. O certo é que o ouro dos palácios de governo de Bagdá ficará mesmo com quem despejou o chumbo grosso no local. Os moldes para o Iraque estão sendo forjados nas fornalhas anglo-americanas. Mais americanas do que britânicas, ressalte-se.

E o pessoal encarregado desta metalurgia política poderia tirar grande proveito da leitura do livro Embracing defeat: Japan in the wake of World War II (Admitindo a derrota: o Japão no rastro da Segunda Guerra Mundial”), do professor John W. Dower, PhD em história e línguas orientais pela Universidade de Harvard e acadêmico no prestigioso Instituto de Tecnologia de Massachusetts. E para quem se envolve em ocupação de terras estrangeiras depois de uma guerra, esse livro tem muito a ensinar. Ele fala da experiência bem-sucedida da administração americana no Japão derrotado. Ressalta que a criação de estruturas democráticas foi fundamental para o êxito. Lembra que o general Douglas MacArthur, uma espécie de pró-cônsul americano no Japão entre 1945-51, fortaleceu sindicatos, legalizou partidos políticos – inclusive o comunista –, fez uma reforma agrária e quebrou a espinha dorsal da autocracia que era dona do país. As decisões de MacArthur (apesar de seu reconhecido autoritarismo), lembra Dower, não foram feitas imperialmente, mas obedeceram sugestões de países aliados, como a Grã-Bretanha, Rússia e China. E, como fator primordial, o governo de ocupação teve a legitimidade internacional que falta no Iraque agora.

“MacArthur encontrou um Japão com grande coerência interna e continuidade. Não se esqueça de que a figura do imperador foi mantida, assim como a burocracia, que permitiu a continuidade da vida nacional”, diz Dower. “Some-se a isso o fato de que, depois de terem sofrido os rigores de uma ditadura militar das mais fechadas e os horrores da guerra, o Japão – que muitos acreditavam não estar preparado para a liberdade – abraçou a democracia com grande receptividade. Hoje, o que vemos no Iraque é uma escolha de ungidos que vão ser impostos como mandantes iraquianos, tanto gente da oposição no exílio, que há décadas não pisa no país, como políticos locais que ainda não tiveram legitimidade popular oficializada para cumprir qualquer missão de mando”, diz o professor. “Não sei se podemos contar também com integridade e coerência no Iraque. As divisões étnicas,
os ressentimentos de alguns segmentos da população contra outros
são palpáveis. Lembre-se de que na revolta promovida pelos xiitas,
em 1991, muitos sunitas foram massacrados, antes de a Guarda Republicana dar o troco numa contra-investida. Ao norte, os curdos nunca fizeram segredo de seus desejos de autonomia, inclusive reclamando agora parte da riqueza de petróleo contida naquele
que consideram seu território”, diz Dower.

O petróleo do Iraque – que tem a segunda maior reserva do mundo, depois da Arábia Saudita – é outro tipo de perturbação com a qual MacArthur não teve de lidar. “O Japão não tinha recursos naturais. Os interesses econômicos que já se prenunciam no Iraque não existiam no Japão. Corremos o perigo de ver a administração do Iraque ser regulada pelos interesses econômicos de corporações escolhidas para a reconstrução do país. Esta é uma receita para o desastre, além de trazer em si o vírus da ilegitimidade”, ensina Dower. “Acho que a ONU poderia agora trazer contribuições muito mais significativas e efetivas. Concordo com a posição européia nesta questão”, completa.

Quarta Guerra – Mas, a julgar pelo andar da carruagem, a ONU terá muito trabalho nas mãos apenas tentando administrar as prometidas novas investidas americanas rumo a outros palácios do Oriente Médio. O ex-diretor da CIA, James Wooley, um dos futuros administradores do Iraque depois do conflito, indicou exatamente isso numa conferência dada recentemente aos alunos da Universidade da Califórnia (Ucla), quando disse que os Estados Unidos iriam passar anos, talvez décadas, fazendo guerra em outras freguesias, naquilo que ele chamou de Quarta Guerra Mundial (ele conta a guerra fria como se fosse a Terceira Guerra Mundial). O vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, o pai de todos os falcões da Casa Branca, definiu claramente a questão: “Ao remover o regime do Iraque, enviamos uma mensagem clara a todos os que usam a violência e espalham o terror contra pessoas inocentes. Os Estados Unidos e a nossa coalizão mostraram que temos a capacidade e a vontade de vencer a guerra contra o terror”, afirmou, em tom triunfante. “Para combater perigos sem precedentes representados por Estados irresponsáveis que detêm armas de destruição em massa, os Estados Unidos vêm adotando ações urgentes. Jogar na defensiva não é o suficiente. Temos que ir atrás deles. Terroristas gostam de se esconder por trás de Estados fora-da-lei”, completou Cheney. E o subsecretário de Estado para o Controle de Armas e Segurança Internacional, John R. Bolton, foi mais explícito: “Espero que determinados países tirem a lição apropriada do Iraque.” Ou seja: depois de Bagdá viriam Damasco, Teerã e qualquer um que não se enquadre na geopolítica neoconservadora do governo Bush. Algo, aliás, que Átila, com seus hunos, já experimentara há um tempão, com sucesso bárbaro.

Onde estão as armas? – “As armas de destruição em massa do regime de Saddam não foram encontradas. Estão, com certeza, em algum lugar. Resta saber se escondidas dentro do território iraquiano ou foram escamoteadas na Síria ou no Líbano”, disse a ISTOÉ um assessor civil do Pentágono. A desconfiança, diga-se, vem sendo levantada desde antes do pontapé inicial na campanha iraquiana, quando outras fontes do governo garantiam a esta revista que Saddam Hussein havia presenteado o grupo xiita radical libanês Hizbolá (Partido de Deus) com mísseis químicos e biológicos. A suspeita, porém, é questionável, principalmente por ter partido de gente ligada ao grupo que promove a falconaria de guerra do governo de Washington. Mas outras fontes, mais independentes, também levantaram a questão. O site da internet “Jane’s Defense”, a mais respeitada e abrangente organização de análise militar e de inteligência do mundo, informava o mesmo há cerca de um mês. Ao se confirmar esta aterrorizante possibilidade e um imaginável envio desses presentes a endereços israelenses por meio de disparos, James Wooley provavelmente veria concretizada sua Quarta Guerra Mundial.

Mas, até lá, resta muito o que fazer ainda dentro do Iraque. Capturar ou matar Saddam Hussein, por exemplo. O ditador já pode se candidatar ao livro dos recordes como o homem mais assassinado da história. Na semana passada, assim como nos primeiros movimentos da guerra, o Departamento de Defesa anunciava que havia atingido uma residência onde os Hussein (o patriarca e seus dois filhos, Uday e Qsay), estavam em conluio. Mais uma morte anunciada, que os eternos céticos colocavam em dúvida. Parafraseando o escritor americano Mark Twain (1835-1910), Saddam poderia dizer que “as notícias de minha morte
são altamente exageradas”. Em todo caso, soube-se na terça-feira
8 que a CIA mantém em seus arquivos exemplares de DNA do líder iraquiano e usará o material para testar quaisquer restos mortais
que possam ser encontrados nos escombros da casa obliterada
por bombas de uma tonelada.

Outra pesquisa difícil empreendida por todo o território iraquiano era a busca das tais armas de destruição em massa. Só falta agora o material realmente apocalíptico estar mesmo na Síria ou Líbano e a busca seguir para lá. O secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, dava indicação de que suas tropas poderiam pegar a estrada de Damasco no futuro. Mas Rumsfeld não tem vocação para ser o apóstolo Paulo. O secretário poderá até cair do cavalo. Cego, dizem seus críticos, ele já é.

Insegurança global

O cientista político Antônio Carlos Peixoto não tem dúvida de que depois da guerra do Iraque “o mundo vai ficar mais inseguro, porque, com a intervenção militar, os EUA deixaram claro que não vão se submeter a nenhuma regra multilateral”. Mas o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro não acredita que Washington deva atacar a Coréia do Norte, país incluído no “eixo do mal”, ao lado do Iraque e do Irã. “A Coréia do Norte tem armas nucleares e isso pode causar um estrago grande, que não interessa à estratégia americana na Ásia”, disse Peixoto. Sobram, então, entre os países na linha de tiro dos americanos, a Síria e o Irã. Quanto a uma investida contra o Irã, o professor disse que “esse tipo de operação militar seria mais complicado e os americanos não estão dispostos a abrir mais uma frente a curto prazo”. Já o coronel Amerino Raposo, diretor do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos (Cebres), prevê aumento de pressões americanas na América Latina, inclusive contra o Brasil. “Certamente serão ainda mais intensas as pressões para o Brasil aderir à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e para assinar o Acordo de Salvaguardas de Alcântara, que vai dar aos americanos um poder ilimitado na principal base especial brasileira.”

Hélio Contreiras