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Em "Carcereiros" (Companhia das Letras), o médico e escritor Drauzio Varella valeu-se da mesma fórmula de seu best-seller "Estação Carandiru". Agora, no entanto, em vez de detalhar a vida dos prisioneiros, dá voz a quem atua no outro lado das grades. O trágico massacre do pavilhão 9, por exemplo, é visto sob o ponto de vista do seu Araújo, trabalhador que "tem o andar, o ritmo da fala e a sabedoria de negro velho dos terreiros de candomblé".  

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Leia um trecho do livro:

Um dia trágico

Seu Araújo tem o andar, o ritmo da fala e a sabedoria de negro
velho dos terreiros de candomblé. Somos amigos há mais de
vinte anos, mas ainda fico em dúvida se o ar simplório lhe é natural
ou se ele o cultiva com requinte profissional para esconder a
sagacidade com que observa o ambiente e o interlocutor.

Às sete da manhã do dia 2 de outubro de 1992, olhou as
plantas no corredor, regou dois vasos de avenca e saiu de casa,
como de rotina. Pegou o metrô na estação Tatuapé, desceu na Sé e
fez a conexão para Santana. Dez para as oito entrava para ocupar
o posto de chefe titular substituto do pavilhão Oito da Casa de
Detenção, conhecida popularmente como Carandiru.

Quando seu Araújo passou pela Portaria, um colega baixo e
entroncado, com a barba por fazer, tomou o cuidado de avisá-lo:

— Está havendo um probleminha no pavilhão Nove. Fica
esperto.

Como no pavilhão Oito a situação era de normalidade, no
meio da manhã, acompanhado de três colegas, ele atravessou o

portão que separava os dois pavilhões, para ajudar os companheiros
de plantão no Nove a solucionar o tal probleminha. O
clima estava tão carregado que lhe veio um presságio:

— Ou muito me engano ou a cadeia vai virar.

De fato, virou. No começo da tarde os presos tomaram o
pavilhão Nove, depredaram as dependências da Administração
e levantaram barricadas atrás da porta de entrada. Por sorte, os
funcionários de plantão conseguiram escapar, o que nem sempre
é possível nessas eventualidades.

Estava armado o cenário para a maior tragédia coletiva da
história dos presídios brasileiros: o massacre do pavilhão Nove.

No Oito, seu Araújo chamou os doze funcionários desarmados
que se achavam de serviço para vigiar 1756 condenados
reincidentes, naquela hora do dia espalhados pelo pátio interno
e pelo campo de futebol, situado entre o prédio do pavilhão e as
muralhas.

Uma vez que o Oito era vizinho de parede do Nove, na parte
do fundo da cadeia, dele separado apenas por um muro e um
pequeno portão de ferro maciço, o grupo concluiu que seria mais
prudente recolher os homens do campo para melhor controlá-
-los, porque, se os reincidentes aderissem, a rebelião se espalharia
pelo presídio inteiro, como já havia acontecido em outra ocasião.

A empreitada, no entanto, não era trivial:

— Porque numa situação dessas o sentenciado fica cheio de
medo de perder a vida. E nós, funcionários, também.

Sem aparentar pressa, foram explicando às rodinhas formadas
no campo que eles nada tinham a ver com os problemas
alheios, que seria mais sensato irem para o pátio interno do pavilhão
porque o pelotão do Choque já estava no presídio e os pms
poderiam vir para cima deles, atrás dos desafetos que lhes causavam
tantos dissabores nas ruas, como era hábito sempre que
invadiam a Detenção. Era melhor não oferecer pretexto a eles.