Há tempos o País não vivia tão intensamente uma eleição presidencial. Mais precisamente, desde 1989, quando Fernando Collor derrotou Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno de um embate marcado pelo acirramento ideológico e pelo desejo do eleitor de pôr fim à inflação. Depois, em 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardosoliquidou a fatura sem dificuldades, em pleitos que em nada empolgaram a população, até então satisfeita com o Plano Real. Mas, passados oito anos de gestão FHC, é fato que o eleitor acena com a vontade de mudança – e não é à toa que esta é a palavra preferida de todos os candidatos, até mesmo de José Serra (PSDB), o escolhido do presidente. Os números de Lula nas pesquisas, ascendentes desde agosto, são reflexo disso: 46,3%, segundo levantamento do Instituto Toledo&Associados, realizado entre os dias 27 de setembro e 1º de outubro, com 2.202 entrevistados, e com margem de erro de 2,09 pontos porcentuais. Os índices dos outros candidatos, somados, completam 44,5%. Até que todos os votos sejam apurados, duas perguntas ficarão no ar: Lula ganhará no primeiro turno? Se houver uma segunda rodada, quem disputará com o petista? A vaga restante pode ser ocupada por José Serra ou Anthony Garotinho (PSB), que têm, respectivamente, 17,6% e 14,8%.

Mas a esperança é a última que morre. E Serra, Garotinho e Ciro depositaram as suas no debate da Rede Globo, realizado na quinta-feira 3. Com pico de 37 pontos de audiência no Ibope, o encontro foi civilizado, teve alguns bons momentos protagonizados, principalmente, por Garotinho, que bateu firme em Lula e Serra. Ciro também se esforçou para recuperar o terreno perdido e a imagem. O ex-governador do Rio chegou a acusar Serra de assinar um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que previa o confisco. Irritado, o tucano disse que a proposta prevê empréstimo compulsório, “o que  não tem nada a ver com confisco de poupança”. Depois atacou: “Garotinho, você está na emissora certa, mas no programa errado. Deveria estar no Casseta & Planeta.” O candidato do PSB também preparou uma armadilha para Lula ao perguntar pela Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), taxação sobre os combustíveis que entrou em vigor este ano. Demonstrando tranquilidade, Lula continuou impassível, sem responder quando a questão era polêmica. Para o petista, o debate pode ser considerado um zero a zero. Tudo continua na mesma. Numa espécie de treino para o segundo turno, Lula atacou Serra e procurou poupar os outros dois. Ciro fez o jogo do PT  e partiu para o ataque: “O governo FH não gastou nada em saneamento básico, mas gastou em propaganda na televisão para tentar iludir as pessoas”, detonou. Serra sofreu, mais uma vez, o ônus de ser governo. Criticado pelos três, reclamou. “Vocês ficam remoendo o passado.” Para Serra e Garotinho, agora é torcer. O senador espera que o candidato do PSB tire votos de Lula e garanta o segundo turno, mas sem ultrapassá-lo. O ex-governador do Rio tem uma missão mais difícil: passar Serra.

A possibilidade de Lula vencer no primeiro turno vem sendo considerada até no Exterior. Nos dias que antecederam a votação, representantes de embaixadas de vários países ligaram para o comitê de Lula para saber em qual telefone ele será localizado no domingo 6, para ser cumprimentado por presidentes e embaixadores em caso de vitória. Apesar do clima positivo, Lula garante que está pronto para encarar um segundo turno: “Estou preparado para jogar dois tempos. Estou que nem a Seleção Brasileira, preparado para a prorrogação”, disse o petista no evento que foi considerado pela militância o mais emocionante da campanha, na terça-feira 1º. Cem mil pessoas, segundo a Polícia Militar, se reuniram em São Bernardo do Campo, onde Lula começou sua vida de líder sindical, para ouvi-lo falar. O candidato fez uma caminhada da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC até a Igreja da Matriz, considerada um símbolo da resistência dos trabalhadores ao regime militar. Com cerca de cinco mil pessoas, a caminhada resumiu o pacto social que o candidato promete realizar caso chegue ao Planalto: estavam presentes operários, líderes sindicais, políticos e até empresários. A seu lado, no palanque, estavam a mulher, Marisa, o governador de Minas, Itamar Franco, e o candidato a vice, senador José Alencar (PL-MG), e políticos como Aloizio Mercadante (PT-SP). “Tudo o que aconteceu até agora não foi apenas para ganhar, mas para provar a frase que eu disse em 1979: que ninguém nunca mais ouse duvidar da classe trabalhadora”, disse Lula, aos prantos. E completou: “Quanto mais tempo passar, mais aliados vamos ter.”

Os tucanos mais otimistas também já falam em buscar novos aliados, garantindo que estarão no segundo turno. O presidente do PSDB,
José Aníbal, espera até mesmo receber o apoio do ex-governador  do Ceará Tasso Jereissati, que abandonou a nau tucana para entrar
na de Ciro Gomes (PPS) e agora prefere a abstenção. Depois de passar um mês estacionado com cerca de 19% das intenções de voto, as equipes de marketing e de política entraram em rota de colisão e, para recuperar o tempo perdido, decidiu-se que FHC deveria entra r na campanha de uma vez. Num dos últimos eventos públicos de Serra no primeiro turno, em Contagem (MG), o presidente dividiu o palanque com o amigo, na segunda-feira 30.

Não bastasse a crise interna, a campanha tucana sofreu um duro golpe na derradeira semana de horário gratuito. O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo decidiu dar oito minutos do último dia do horário gratuito de Serra para Lula e para o PT como direito de resposta. Sobrou para o líder mais carismático do tucanato: Mário Covas, morto em 2001. Depois que Serra associou a cena do ex-governador apanhando de professores em greve a um discurso de Dirceu, os petistas exibiram, no direito de resposta, imagens do mesmo Covas apoiando a prefeita Marta Suplicy em 2000 e elogiando José Genoino, candidato petista ao governo paulista. Ironicamente, terminado o tempo do PT no programa de Serra, a viúva Lila Covas surgiu pedindo votos para o ex-ministro em nome do marido.

Os tucanos comemoraram
a pesquisa Datafolha divulgada
na quarta-feira, 2, que apontava seu crescimento – de 19% para
21% – e a estabilidade de Lula
nos 45%. A pequena subida de
Serra representa o aumento da vantagem do tucano em relação
a Anthony Garotinho, que continuou com 15%, na pesquisa. Eles estiveram empatados no segundo lugar durante duas semanas, o
que motivou, inclusive, ataques
ao candidato do PSB no programa de Serra na tevê. O PSDB sabe que Garotinho está no jogo e tem chance de ir ao segundo turno.

Ao mesmo tempo que se dedicou a construir a imagem de político de esquerda, com algumas teses mais radicais que as do próprio
PT, Garotinho esculpiu para si o formato de pai de família exemplar, evangélico fervoroso, conservador nos costumes. “Não há contradição nisso”, acredita o publicitário Carlos Rayel, coordenador de comunicação da campanha do ex-governador. A estratégia de Garotinho foi atacar duramente os banqueiros, desqualificar o acordo assinado com o FMI e bradar sua condição de único candidato que não fez alianças com políticos conservadores.Na vida pessoal, a imagem é de um homem conservador. Exibiu à exaustão a mulher, Rosinha, candidata ao governo do Rio, e os nove filhos. “A família é o núcleo principal, que deve ser tratado como prioridade. Isso pode evitar muitos dos problemas que a sociedade enfrenta”, acredita. Também repetiu exaustivamente sua opção religiosa, o que deve lhe garantir votos de eleitores evangélicos como ele. “Conseguimos fazer o que havíamos planejado como estratégia. Ele chega à reta final como vencedor”, avalia Rayel.Já Ciro Gomes foi do céu ao inferno. Esta campanha presidencial, a segunda do ex-governador do Ceará, foi seu purgatório. Depois de ser alçado ao paraíso pelos indecisos de plantão e, em julho, empatar com Lula, o candidato da Frente Trabalhista (PPS-PDT-PTB) caiu vertiginosamente e hoje tem 11,3%. Na última semana antes da eleição, Ciro perdeu os pontos que faltavam para obter o mesmo porcentual de votos que teve em 1998. Ou seja, sua popularidade continua a mesma de há quatro anos. Pior: ele deixa a arena da disputa com a fama de “destemperado”, imagem que Serra, seu mais novo arquiinimigo, ajudou a impregnar. Às vésperas do dia 6 de outubro, os boatos de que Ciro renunciaria insistiam em não deixá-lo em paz. Nos últimos eventos dos quais participou, passava grande parte do tempo negando a boataria, fomentada, inclusive, por seu guru, o filósofo Roberto Mangabeira Unger, que propôs que Ciro e Garotinho renunciassem em favor de Lula. Na terça-feira 1º, abalado, o candidato rumou para seu último comício, no bairro Conjunto Ceará, na periferia de Fortaleza.

Colaboraram: Adriana Souza e Silva, Aziz Filho, Francisco Alves Filho (RJ), Florência Costa e Neila Fontenele (CE)

Os desafios de Mr. da Silva

Uma eventual vitória de Lula na disputa presidencial mereceu a capa da última edição na revista britânica The Economist, que vê no acontecimento o “triunfo para a democracia brasileira”. Segundo a reportagem, a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder tem
um significado que ultrapassa as fronteiras brasileiras. Colabora para derrubar, de uma
vez por todas, o mito de que as eleições na América Latina “são um jogo marcado para beneficiar as elites”. Referindo-se ao candidato como Mr. Da Silva, a revista compara a trajetória do ex-torneiro mecânico com um típico enredo de novela.
O herói da história teria o apoio popular por representar a mudança, mas sabe-se que ele está mais próximo da linha centro-esquerda.
O nervosismo do mercado financeiro e o perfil “peace and love”
do candidato também são mencionados em The Economist. A reportagem diz ainda que Lula terá de continuar as reformas de
FHC, que recebeu elogios, e que sua chegada à Presidência representaria uma saudável alternância de poder.

Adriana Souza e Silva