Nos Estados Unidos, diz-se que o vice-presidente Dick Cheney vive na Fortaleza da Solidão. A referência ao endereço do personagem Super-Homem não é gratuita. Desde os atentados de 11 de setembro, o segundo em comando no país tem se recolhido em “local secreto”, para salvaguarda pessoal e da hierarquia de poder. Essa prática eremita intensificou-se depois dos estouros dos escândalos financeiros em companhias americanas como a empresa de energia Enron, a de telecomunicação Worldcom, e outras acusadas de práticas ilegais de cozimento de seus balanços financeiros. Cheney, suspeita-se, mantinha contato privilegiado com os incriminados, além de ter encabeçado – antes de eleito – a multinacional Halliburton Company, denunciada pelas mesmas maracutaias. Desse modo, o esconderijo vice-presidencial veio a calhar, quando as pressões de membros do Congresso passaram a exigir explicações sobre essas atividades, sem conseguir arrancar respostas daquele cujo paradeiro era incerto. Na semana passada, porém, Dick Cheney emergiu da toca de modo espetacular: como super-herói dos falcões de guerra do governo, e disposto a salvar os esforços deste grupo para uma iminente invasão do Iraque. A missão, entenda-se, também procurava conter a rebelião de um grupo de luminares do Partido Republicano, que grita cada vez mais alto, recomendando cautela nos ânimos guerreiros e acerto nos passos das danças diplomáticas em busca de parceiros para o rock’n’roll sobre Bagdá.

Há algo mais do que os aviões de carreira no céu de Washington. Trata-se do combate entre os chamados falcões da guerra e os pombos da paz. Antes que os bombardeiros americanos ultrapassem o paralelo 32 no Iraque, será necessário ganhar a batalha pelos corações e mentes dos americanos, incluindo-se aí figurões republicanos. Não que Saddam Hussein mereça as simpatias do país: em pesquisa recente do jornal USA Today, 86% dos entrevistados acreditam que o ditador iraquiano está dando apoio e guarida a terroristas, e nada menos do que 50% acham que ele teve participação nos ataques de 11 de setembro. Do lado republicano, quem pede cautela não é ninguém avesso a derramamento de sangue. A começar pelo ex-secretário de Estado Henry Kissinger. Ele foi tomado pelo ensejo da pena, para aconselhar pelos jornais que se tente os labirintos diplomáticos da Organização das Nações Unidas para se chegar a Bagdá em boa companhia. “Não podemos ter para sempre uma doutrina de ataque preventivo”, disse Kissinger. Depois dele, pulou na refrega ninguém menos do que Brent Scowcroft (currículo: ações no Iraque e Somália). A entrada de Scowcroft no ringue tem simbolismo especial: ele foi conselheiro de Segurança Nacional de George Bush, pai, e é tido como uma espécie de porta-voz informal do velho presidente. O que se especula é que papai Bush esteja mandando recado claro ao filhote W. para que este se afaste da revoada de falcões em seu governo. Fontes próximas ao ex-presidente garantiram a ISTOÉ que essas suspeitas são realidade. “O artigo de Scowcroft no Wall Street Journal, em 15 de agosto, foi um modo do velho Bush tornar público aquilo que vem dizendo na privacidade ao filho”, disse a fonte de ISTOÉ.

Busca de consenso – Por último, as tropas da moderação enviaram seu campeão peso pesado, o ex-secretário de Estado James Baker III, que num ensaio nas páginas editoriais do New York Times traçou estratégia clara para o ataque. Trata-se de uma peça clássica do intervencionismo americano, que passa pelo Conselho de Segurança da ONU e busca a formação de alianças e apoio de países aliados. Não deixou de mencionar também a necessidade de nova política para a questão palestina, reclamada pelas nações árabes. Baker, sabe-se, não é nenhum pombinho: dias antes da guerra do Golfo Pérsico, em 1991, ele foi ao encontro do chanceler iraquiano Tareq Aziz com o único intuito de dizer que, se o Iraque usasse armas biológicas ou químicas contra as forças da coalizão ocidental ou Israel, os Estados Unidos responderiam nuclearmente, provavelmente pulverizando Bagdá. Ele falava sério. Esta disposição guerreira e o fato de ter sido o comandante da vitória da chapa Bush 2000 no imbróglio eleitoral da Flórida o credenciam a ter os ouvidos do presidente. E ele é o tenor de um coral que também conta com astros internacionais como o chanceler (premiê) alemão, Gerhard Schröder, que vem criticando o governo americano em suas intenções bélicas, e até o fiel companheiro de Tio Sam, o primeiro ministro inglês Tony Blair, que não está disposto a enfrentar uma rebelião em seu próprio Partido Trabalhista. Além disso, a oposição conservadora e a opinião pública britânicas se opõem a ações no Iraque.

Foi quando Dick Cheney resolveu partir para a ofensiva. Sua ala estava correndo o risco de perder a parada, cedendo o palanque para os moderados, capitaneados pelo secretário de Estado, Colin Powell. No rank das tropas republicanas em ativa no Congresso também já se ouve o rufar dos tambores da rebelião. O vice-presidente saiu de seu bunker para uma solenidade de veteranos de guerra para rebater as ponderações dos próceres do partido e da imprensa. Jogou com o terror, dizendo que Saddam está prestes a se capacitar nuclearmente, o que o tornaria um adversário muito mais formidável e difícil de conter. O tempo, segundo Cheney, é muito escasso para minuetos diplomáticos na ONU ou com aliados. Não ofereceu, porém, nenhuma prova clara para esta pressa. Ficou também no ar se o vice fala pelo presidente. Bush, em férias prolongadas em seu rancho texano, dissera dias antes ser “um homem muito paciente” , que ouviria a todas as ponderações antes de tomar qualquer decisão. Não se deixou de notar, durante a coletiva de imprensa, o simbolismo do falcão Donald Rumsfeld, o secretário da Defesa, de linha dura, postado a seu lado direito. Dias depois desta suposta tomada de posição em cima do muro, Bush ouviria o canto de guerra de Cheney via CNN. “Dick não fala por si”, garante o senador direitista Tom Delay, líder republicano no Senado. “O que o vice-presidente fala é exatamente o que pensa o presidente. Quem manda é George W. Bush”, diz o senador. Há quem duvide disso e ache que, na Casa Branca, quem usa as calças é o Dick.

Negócios – Cheney pode, pelo menos, usar o argumento de que sua pinimba com Saddam se deve a puro patriotismo. Como diz o chavão hollywoodiano dos filmes de gangsteres: “It’s nothing personal. Just Bussiness” (Não é nada pessoal. Apenas negócios). O vice-presidente é homem absolutamente escolado em negócios. Afinal, durante os cinco anos em que serviu como executivo-chefe da Halliburton, viu a empresa faturar alto com negócios duvidosos com o Iraque. Sim, o mesmo Iraque de Saddam, contra quem, durante a guerra do Golfo, deu a ordem para que fossem despejadas as bombas que danificaram, entre outras instalações, as refinarias de petróleo do país. Depois do estrago, a Halliburton, através de várias subsidiárias na França, Alemanha, Itália e Áustria, foi ajudar o ditador iraquiano a reparar os danos. Até novembro de 1999, a empresa comandada por Richard Cheney faturou US$ 23,8 milhões com a venda de equipamentos de refinação e prospecção de óleo ao Iraque.

Além disso, prestou serviços de instalação desse equipamento via subsidiárias, como a Dresser Rand e Ingersoll-Dresser Pump. Os valores conjuntos desses contratos superam todos os lucros de qualquer outra companhia ianque fazendo negócios com Bagdá. Foram usados artifícios legais para burlar as sanções impostas ao Iraque, que impedem companhias americanas de fazer negócio com aquele país. Outros fregueses do falcão Dick incluem o chamado “eixo do mal” a que se referiu Bush: Coréia do Norte, Irã e até o Afeganistão dos taliban.

Entenda-se: não se quebrou nenhuma lei nesses negócios, já que a Halliburton sempre contou com excelentes advogados. Mas os críticos do vice-presidente não deixam de acusá-lo do crime de má conduta. Afinal, foi com a ajuda desses mesmos consertos que Saddam Hussein conseguiu extrair o óleo que, através de contrabando, lhe deu mais de US$ 1 bilhão. Dinheiro que, supõem-se, serviu para financiar os programas bélicos iraquianos de que tanto fala Dick Cheney.