O vice-presidente do Congresso Judaico Mundial diz que minorias israelenses e palestinas não têm o desejo político de terminar o conflito

Vestindo um blazer sem gravata, bem à vontade e com um sorriso maroto, dificilmente alguém adivinharia de pronto as proezas e as polêmicas que cercam a vida deste rabino. Arthur Hertzberg, 82 anos bem vividos, vice-presidente do Congresso Judaico Mundial (CJM), pegou em armas para defender o Estado de Israel em 1948 e 1949. Nascido em Lubaczov (Polônia) e desde 1926 radicado nos Estados Unidos, Hertzberg se define como um liberal (o que nos EUA quer dizer centro-esquerda), tendo sido um dos grandes defensores judeus da causa dos negros. Com acesso aos grandes da Casa Branca, conheceu Henry Kissinger quando o futuro secretário de Estado americano tinha apenas 14 anos, no momento em que sua família, de judeus alemães, se estabelecia nos EUA, fugindo do nazismo. Kissinger escreverá o prefácio da autobiografia de Hertzberg, a ser lançada em novembro deste ano. Nesta entrevista exclusiva a ISTOÉ, o rabino afirma que não acredita que possa haver paz entre israelenses e palestinos enquanto não houver Estado palestino, e diz que as críticas das esquerdas à ação do governo israelense hoje são críticas ao Estado de Israel. Mas ele também diz que não se sentaria à mesma mesa do premiê israelense, Ariel Sharon, lembrando que ele foi responsável pelo massacre de refugiados palestinos nos campos de Sabra e Chatila, no Líbano, em 1982. Ao mesmo tempo, Hertzberg acusa o secretário da Justiça, John Ashcroft, e os assessores de Defesa Richard Perle e Paul Wolwitz de fazerem o lobby de Israel na Casa Branca. As opiniões contundentes do vice-presidente do CJM causaram um certo mal-estar na comunidade judaica paulista durante sua visita a São Paulo, a convite da Congregação Israelita Paulista (CIP).

ISTOÉ – Quais as chances de haver paz em Israel?
Arthur Hertzberg

Não haverá paz em Israel enquanto os palestinos não tiverem um Estado. Em Israel, sou considerado um “liberal”, de centro-esquerda, e assim tenho sido nos últimos anos. Logo depois da guerra dos seis dias (1967), quando Israel tomou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, eu fui um dos primeiros judeus a dizer que deveríamos devolver essas terras aos palestinos, porque, se não fizéssemos isso, teríamos problemas para sempre. Em 1969, escrevi um artigo na Universidade de Columbia, onde lecionava, com essa posição, que mantenho até hoje.

ISTOÉ – O que mudou desde 1967?
Arthur Hertzberg

Pouca coisa. E nada para melhor. Primeiro, a direita construiu assentamentos de colonos judeus por todo Israel. O primeiro-ministro, Ariel Sharon, tem grande responsabilidade nisso. E o governo israelense tem sido ambivalente quanto ao preço que terá que ser pago pela paz. Nunca houve o verdadeiro desejo político em se pagar esse preço. Deixe-me contar uma história: em junho deste ano, fui convidado a discursar na abertura do Congresso Sionista Mundial sobre a seguinte questão: se Israel poderia ser um Estado judeu e democrático. Dividi o palanque com o chefe da Justiça de Israel, Aaron Barak. Eu disse que a noção de que a minoria árabe de Israel (com representação no Parlamento) pudesse ser um homem/um voto não é verdadeira, porque, se tiver que ser um Estado judeu, tem que manter suas características judaicas. E, a propósito, isso não é nada diferente do que muitos Estados já fazem no mundo. Os Estados Unidos, meu país, por exemplo, têm várias restrições sobre a entrada de centenas de estrangeiros. O Brasil, acredito, também deve ter suas restrições e não receberia de uma só vez, por exemplo, três milhões de japoneses. Se um Estado quiser que prevaleçam as características de seu povo, terá que colocar algumas restrições. Por outro lado, nós, judeus, temos uma grande responsabilidade perante a humanidade. Então, Israel não pode obter sucesso se for totalmente obediente aos princípios democráticos, mas é melhor que assim o faça.

ISTOÉ – O que o sr. está dizendo é que um Estado judeu não pode ser democrático?
Arthur Hertzberg

Seja lá qual for o Estado, seja lá qual for a sociedade, é preciso haver restrições. Mesmo assim, Israel é o único lugar no Oriente Médio onde há cristãos missionários circulando livremente. Durante a guerra da Coréia, fui o rabino da Força Aérea Americana na Europa, usava o mesmo uniforme dos soldados americanos e meu quartel era em Londres. Os EUA tinham tropas na Arábia Saudita, exatamente como agora. Mas os cristãos e os judeus não podiam usar a cruz cristã ou a estrela de David porque não era permitido pelos sauditas. Com todas as críticas que existem contra Israel, lá há mais liberdade religiosa do que em qualquer país muçulmano.

ISTOÉ – Mas como o sr. vê a guerra em Israel hoje?
Arthur Hertzberg

Nesta guerra suja, que começou com a nova Intifada, Israel matou civis e atacou lugares que não deveria atacar. Mas quem matou mais até hoje? Israel ou americanos no Afeganistão? Ninguém saiu às ruas para protestar contra os mortos no Afeganistão, porque não está na pauta do dia. E, na verdade, ninguém protestou veementemente contra os homens e mulheres-bomba. Os palestinos não têm um futuro econômico. Muito menos agora, que estão em guerra. Se um jovem palestino ou uma palestina põe na cabeça que poderá trazer melhora para sua família ao ser um suicida e receber US$ 25 mil, doados pelo Irã ou pela Arábia Saudita, eles estarão fazendo mais por suas famílias como mortos do que como vivos. Essa é a tragédia. Por isso, precisamos acabar com esse desespero econômico.

ISTOÉ – Os políticos que acreditavam nesta teoria, como o ministro Shimon Peres, parece que desistiram e mudaram para o lado de Sharon.
Arthur Hertzberg

O problema é que a política do Oriente Médio é conduzida em dois níveis. O primeiro nível, o imediato, pelas questões domésticas. Por exemplo, quando o ex-premiê Ehud Barak ofereceu aos palestinos a mais generosa proposta que um governo judeu poderia ter oferecido aos palestinos, eles a rejeitaram. E por quê? Há muitas histórias sobre concessões que não foram feitas. Bobagem. Os palestinos poderiam continuar negociando depois do acordo. A proposta, na verdade, foi rejeitada por questões internas do comando palestino. Existem aqueles que não querem negociar com Israel. Eles querem os judeus jogados ao mar. Então, não importa o que seja oferecido, não haverá negociação. Ao mesmo tempo, qualquer premiê israelense que oferecer aos palestinos o máximo, o que eles nem sonhariam, será seguramente destituído do poder. Ou seja, na esfera doméstica de ambos os lados, as negociações são inviáveis. Mesmo que haja um premiê que repita a oferta de Barak, sabe o que aconteceria? Haveria uma minoria judaica que pegaria em armas. A mesma que assassinou o premiê Yitzhak Rabin. Portanto, dos dois lados há pessoas que consideram a paz perigosa. E o que circula nos bastidores do governo israelense é que Sharon e o Hamas estão de pleno acordo. Ambos querem continuar com a guerra.

ISTOÉ – A propósito, como o sr. vê o primeiro-ministro Ariel Sharon? Hertzberg
Arthur Hertzberg

Eu não me sentaria na mesma mesa com ele. Não o perdoei pelo massacre de Sabra e Chatila (assassinato de refugiados palestinos em campos de refugiados em 1982). Logo depois da guerra do Líbano, Sharon foi condenado por suas ações pela Suprema Corte de Israel. Por que então eu deveria perdoá-lo e ter uma visão diferente da Justiça de Israel? Mas, ao mesmo tempo, é preciso entender que os ataques feitos hoje contra Sharon não são contra ele, mas contra o Estado de Israel. E são feitos pela esquerda. Vamos parar com essa história de atacar Sharon. Ele é tão terrível quanto a Intifada. Esta é uma história de críticas da esquerda contra Israel. Para ela, deveríamos desaparecer. Há dois tipos de críticas a Israel: a que diz que Israel deve ser mais razoável e a daqueles que acham que Israel não deveria existir. E aos que me perguntam muitas vezes o porquê de eu não ser mais próximo do meu colega Edward Said (um dos mais respeitados acadêmicos palestinos), que foi meu amigo durante anos na Universidade de Columbia, eu explico. Durante a guerra do Líbano, cheguei até a contatar as Forças de Defesa de Israel para ter certeza de que iriam poupar a vida da mãe de Edward, que estava em um apartamento em Tel-Aviv. Porque, quando estou com os judeus, digo a eles que devem ser razoáveis, mesmo que os árabes façam o pior. É nossa missão fazer de Israel um lugar melhor. Mas Edward hoje está com os que querem ver Israel desaparecer.

ISTOÉ – Qual a vantagem para Sharon continuar com a guerra?
Arthur Hertzberg

Se ele não continuar com a guerra, isso significará ceder em muitas coisas. Ele teria que acabar com os assentamentos dos colonos judeus, permitir um Estado palestino. Hoje, ele já teme perder o poder para o ex-primeiro-ministro Bibi (Benjamin Netanyahu), que é muito pior que Sharon. Eu conheço Bibi desde que ele é um adolescente. Seu pai entrou no meu lugar na Universidade de Cornwell e eu fui o responsável pela educação de Bibi nos Estados Unidos e, portanto, posso dizer que ele seria muito pior do que Ariel Sharon, porque Sharon é menos aventureiro. Eu sei que Sharon fez coisas terríveis. Fui até uma das pessoas que testemunharam contra ele no caso Sabra e Chatila. Uma semana depois do episódio, escrevi um artigo no NYTimes dizendo que Sharon não deveria realizar o pogrom (massacre). Não estou aqui justificando o massacre que esses homens fizeram. Mas também entendo que, uma vez no poder, eles dependem da opinião pública de Israel. Assim como há palestinos que gostariam de lutar até ver o último judeu ser jogado ao mar. Ideologicamente, a paz não poderá ser feita entre judeus e palestinos. Porque nenhum dos dois deixará de lado uma peça fundamental para eles. Judeus não vão dizer aos palestinos que Jerusalém pertence a eles. E palestinos não vão concordar que eles estejam ali. Nenhum dos lados está pronto para conceder.

ISTOÉ – O sr. solicitou um encontro com dom Paulo Evaristo Arns. Por quê?
Arthur Hertzberg

O cardeal Arns foi um homem que colocou para este país que o significado de ser religioso é ser um defensor das classes mais pobres. E eu tenho como definição que religião é defender os indefesos. E por isso, como um judeu, é importante dizer ao meu povo que devemos fazer algo para os palestinos, que também são filhos de Deus. Em 1973, eu estava na sinagoga e minha mulher veio me contar que estourara a guerra do Yom Kippur. Parei com a cerimônia na qual estavam 200 pessoas. E comecei a fazer uma prece para os soldados judeus que estavam sendo mortos naquele momento, e também para os soldados egípcios. Eu orei: “Vamos nos lembrar que nenhum desses soldados escolheu estar na guerra, mas essa escolha foi feita por outros. E esses soldados, israelenses e egípcios, têm famílias e filhos que ficaram sozinhos.”

ISTOÉ – Como o sr. vê a possibilidade de uma nova guerra contra o Iraque?
Arthur Hertzberg

George W. Bush está pronto para ir para a guerra. Porém, o secretário de Justiça, John Ashcroft, escreveu naquele famoso artigo no ano passado no Wall Street Journal que ir para a guerra contra o Iraque seria muito complicado. Ashcroft foi um dos homens mais próximos ao Bush pai, sendo assim íntimo da família. Ele é um dos que circulavam pela Casa Branca quando o jovem Bush estava com apenas 20 anos e ainda goza de muita influência na família. Acredito que existe um racha no círculo mais próximo ao presidente sobre se os Estados Unidos devem ou não ir à guerra. Basicamente, esta é uma guerra do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld. Do ponto de vista dos judeus, uma guerra contra o Iraque seria uma insanidade. Não seria bom para Israel, porque significaria uma guerra no Oriente Médio. E se o Iraque conseguiu na guerra do Golfo, em 1991, mandar mísseis para Israel, hoje os mísseis são muito mais mortais e, portanto, perigosos. E um ataque contra Israel justificaria o governo israelense usar seus mísseis. Seria uma guerra sem data para terminar, com Israel como protagonista. Uma guerra assim não seria como a primeira contra o Iraque, mas estaria mais próxima de um Afeganistão, de um Vietnã. Porque haverá uma batalha terrestre, corpo a corpo, e com cadáveres voltando aos EUA dentro de sacos plásticos. E, para os inimigos de Israel, esta não seria uma guerra da América contra o Iraque, mas uma guerra contra o inimigo Israel. Rumsfeld, é alemão e certamente não é judeu. Mas seus principais conselheiros, como Paul Wolfitz (do Departamento de Defesa), que não apenas é judeu, mas nasceu em Israel, e Richard Perle (um dos mais importantes conselheiros de Bush na Defesa), fazem o lobby a favor de Israel.

ISTOÉ – Então, o que fazer com Saddam Hussein?
Arthur Hertzberg

Acredito que a oposição iraquiana não tem a mínima força para destituí-lo do poder; eu acho isso mistificação. Acredito que sanções econômicas realmente severas funcionariam e com essas medidas garantiríamos uma maior cooperação dos europeus do que no caso de uma guerra. Existem muitas práticas econômicas que fariam a diferença.

ISTOÉ – O sr. fala de sionismo em diversos de seus livros e artigos. Como definir o sionismo nos dias de hoje?
Arthur Hertzberg

O melhor caso para o sionismo não é religioso. Se nós falarmos Deus nos deu esta terra, os cristãos também podem dizer o mesmo porque esta é a terra de Jesus, e os muçulmanos diriam que é deles desde Maomé, e isso seria uma guerra sem fim. Depois do Holocausto, a missão dos judeus era ter sua terra. Eu peguei em armas em 1948 e 1949. Para isso, tivemos que fazer uma injustiça com parte do mundo árabe. E o mesmo aconteceu com a ação afirmativa nos Estados Unidos. Na minha família eu vivi duas dessas situações. A minha irmã mais velha passou no exame, mas não pôde ingressar na Universidade de Medicina de Harvard porque sua vaga estava destinada a um estudante negro, segundo lei que estabeleceu a ação afirmativa. Meu neto Michael fez exames para entrar numa escola secundária da elite da Califórnia e suas notas eram ótimas. Porém, o rejeitaram porque as vagas eram destinadas às minorias. Apesar de eles não terem entrado, eu sou a favor porque acredito que isso foi feito pelo bem da maioria da sociedade americana. A injustiça feita aos árabes foi o preço a se pagar para que os judeus sobrevivessem. E se se aceitam argumentos em favor das minorias com as ações afirmativas, porque não o fazem a favor dos judeus?