Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão, todo artista tem de ir aonde o povo está.
Milton Nascimento e Fernando Brant em Nos bailes da vida

Praça, circo ou banco de jardim, qualquer lugar pode se transformar em um centro cultural. Até o renomado pianista Arthur Moreira Lima arregaçou as mangas da casaca e resolveu democratizar sua arte. Como um saltimbanco do século XXI, ele transformou a carroceria de um caminhão Scania para levar seus recitais aos grotões do País. Mambembe? Cigano? Ele afirma que não. “Tem gente que acha que eu vou morar no caminhão. Não é nada disso. O que é romântico não é prático”, diz o pianista. “Resolvi montar um palco sobre rodas para permitir a produção de espetáculos onde não existe teatro. Montar um tablado ao ar livre dá muita mão-de-obra. Com o caminhão, em menos de uma hora está tudo pronto”, conta. Moreira Lima confessa nunca ter dirigido um veículo desse porte. É um motorista que se encarrega de levar o caminhão-palco – com oito metros de boca de cena e o precioso instrumento Steinway – até os locais de apresentação. O pianista segue de carro. Eles já percorreram algumas cidades do interior de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. “Existe uma demanda surda pelo meu trabalho. Tem gente que nunca ouviu música clássica e de repente se descobre apaixonado por ela. Meu projeto é levá-la a pessoas que nunca viram um piano de cauda”, promete o artista, que planeja descer o rio São Francisco tocando de cidade em cidade no primeiro semestre do ano que vem.

Em 1979, os atores José Wilker, Betty Faria e Fábio Junior realizaram uma viagem parecida, comandados pelo diretor de cinema Cacá Diegues. Na ocasião, os personagens interpretados por eles no filme Bye Bye Brasil integravam a Caravana Rolidei e percorriam pequenos vilarejos às margens da rodovia Transamazônica para levar ficção aonde ainda não existia tevê. Hoje, a mais distante aldeia indígena da Amazônia já possui antena parabólica e gerador de energia. Isso não significa que a arte exista em abundância nesses locais. Onde sobra televisão costuma faltar dança, teatro e literatura. No Paraná, para surpresa de quem vem de fora, as coisas são diferentes. Até espetáculos gratuitos de ópera têm excursionado pelo interior do Estado desde a criação, em 1999, do projeto Comboio Cultural, idealizado e mantido pela Secretaria Estadual de Cultura.

O Comboio agrega nove ônibus adaptados para montagens públicas, cada qual dedicado a um gênero artístico diferente: teatro, MPB, música erudita, dança, ópera, teatro de bonecos, musical infantil e literatura, além de um veículo reservado para apresentação de artistas locais. Em menos de dois anos, todos os 399 municípios paranaenses receberam pelo menos uma vez um dos ônibus do comboio. “Conheci cidades que nunca imaginei. Em cada viagem ficamos cerca de 15 dias, com duas apresentações diárias”, conta a atriz Simone Magalhães, integrante do ônibus Musical Infantil desde o início do projeto. Diferentemente de Arthur Moreira Lima, a equipe do Comboio Cultural passa 15 dias seguidos no ônibus, viajando com ele entre uma cidade e outra. Na hora de dormir, recolhem-se em algum hotel. Quando termina um roteiro, as equipes têm 15 dias de folga antes de partir para uma nova odisséia. “A diferença para uma sala de espetáculos é que não existe poltrona numerada nem fila para comprar bilhetes. Mas platéia é platéia, mesmo quando algum cachorro começa a latir durante a peça. O barulho da rua pode ser mais receptivo do que o silêncio do teatro”, diz Simone, já acostumada a ver o público desaparecer aos primeiros sinais de chuva.

O projeto do Paraná não é filho único. Nas pequenas cidades do Rio Grande do Sul, a receptividade é a mesma em cada parada do grupo Viramundos. Como palco, os atores gaúchos usam um ônibus com a lateral aberta, nos moldes do Comboio Cultural. Como o personagem de Fernando Sabino transformado em título da canção libertária de Gilberto Gil, os Viramundos já percorreram 170 cidades e alcançaram recentemente os domínios de Santa Catarina, Paraná e São Paulo. “Em São Jorge (RS), um senhor de 90 anos disse que nunca havia assistido a uma peça”, conta um dos atores. Na hora de escolher o itinerário, a comitiva privilegia locais onde não há cinema ou teatro – já que televisão é figurinha fácil em qualquer lugar. Quando se reuniram pela primeira vez, há dois anos, os atores, todos alunos da Universidade de Passo Fundo, no norte do Estado, queriam montar um espetáculo para se apresentar lá mesmo no campus ou, quem sabe, em alguma sala de espetáculo da cidade. Eles ainda não eram nômades nas primeiras montagens, até que uma companhia de transporte urbano do município cedeu um coletivo aposentado para a trupe. “Nosso desafio foi integrar tecnologia ao ônibus. Tivemos de decorar todo o veículo para que o resultado ficasse profissional”, conta o produtor e ator Guto Pasini. O custo total, conseguido por meio de leis de incentivo à cultura, beira os R$ 260 mil.

Uma das principais características da atividade do Viramundos é o caráter político da empreitada. A primeira peça, O ferreiro e a morte, apresentada no ano passado, celebrou a cultura gaúcha e expôs a relação entre capitalismo e fé por meio de personagens estereotipados como o político que quer levar vantagem em tudo. Agora, na montagem de O parturião, inspirada na comédia italiana, o diretor Marcio Vinicius Bernardes confia nos elementos de cordel introduzidos na trama. “O Viramundos não pretende apenas levar entretenimento às pessoas, mas também estimular a reflexão e a crítica social”, entusiasma-se. O novo folhetim faz críticas à burguesia e ao machismo e leva a platéia às gargalhadas com uma inesperada gravidez dos personagens masculinos. Se soubessem que os atores passam seus dias na estrada, dormindo amontoados no ônibus ou em alojamentos com goteiras, talvez os espectadores não rissem tanto. Os integrantes, porém, são os últimos a reclamar. “Não há nada mais gratificante do que ver mil, duas mil pessoas com brilho nos olhos”, emociona-se o ator e músico Eliézer Aires, com o romantismo inegável de um autêntico mambembe.