Privilegiado esse esporte chamado surfe. Não perde a pose nem quando deixa seu habitat natural: a praia. E a troca, nesse caso, foi feita com certas vantagens. Areia, sol e mar abrem espaço para a exuberância da Floresta Amazônica. Mas o que pranchas e selva têm em comum? A resposta é a pororoca. O encontro das águas do oceano Atlântico com as dos rios amazônicos está se transformando em um dos principais locais, ou como preferem os surfistas, picos para a prática do esporte no Brasil. A cada ano, mais parafinados encaram o fenômeno, fonte de lendas e temor dos caboclos, como são chamados os nativos da floresta.

Pode-se dizer que a Pororoca é o sonho de 11 entre dez pegadores de onda. No mundo, não há registro de um deslocamento aquático que permita a alguém deslizar sobre uma prancha por quase uma hora. Por sua constância, intensidade e pressão, o fenômeno sempre mexeu com a imaginação de surfistas. Mas as primeiras tentativas de domá-la só aconteceram em 1997. “Nos campeonatos nas praias aqui do Norte sempre alguém perguntava: “Por que não surfar a pororoca?”. Fiquei com isso na cabeça e fui ver se era possível. Com base em fotos aéreas e imagens feitas por Jacques Costeau, descobri que havia condições para a prática do esporte”, diz o surfista e empresário paraense Noélio Sobrinho, 33 anos. A primeira pororoca a ser surfada foi a do rio Araguari, no Amapá. Os primeiros a “botar pra dentro”, surfar na gíria do esporte, foram o pernambucano Eraldo Gueiros e o carioca Guga Arruda. Pouco tempo depois, Noélio e mais três surfistas domaram o fenômeno no Canal do Perigoso, na Ilha do Marajó.

De lá para cá, Noélio organizou mais de 40 expedições em busca da onda perfeita. Catalogou 19 pororocas surfáveis e criou, ao lado do pai, Francisco Sobrinho, o Campeonato Brasileiro de Surf na Pororoca. Disputado desde 1999, o torneio é realizado no rio Capim, às margens do município de São Domingos do Capim, no leste do Pará. O sucesso é tamanho que este ano o campeonato ganhou duas novas etapas, em Cotias do Araguari, no Amapá, e Arari, no Maranhão, que terminam em maio. A maior fera do surfe na pororoca é o paraense Sandro Buguelo, tricampeão nas águas do fenômeno. O carioca Ricardo Tatuí vem logo atrás, com dois títulos. “A pororoca exige respeito. É uma onda que tem vida própria. Quem surfá-la estará mais próximo do criador”, diz Noélio. Sua profecia quase se realiza de fato. A força e a violência da onda, que pode chegar a até quatro metros, viraram nove barcos em 2001 e seis no ano passado. Barcos e jet skis são usados nos campeonatos para levar os surfistas até as ondas. Este ano, novas medidas de segurança foram implantadas e nenhuma embarcação virou no Capim.

Poucos surfistas conhecem tão bem o poder devastador da natureza quanto o big raider, surfista de ondas grandes, Carlos Burle. Em janeiro, por pouco o pernambucano de 35 anos não perdeu a vida na gigantesca onda de Jaws, mandíbula em português, no Havaí. Ao cair, Burle foi torcido pela massa d’água, que lhe causou fraturas na pélvis e no fêmur, além de uma torção no joelho. Ainda precisando de auxílio para caminhar, Burle escolheu justamente a pororoca para voltar a fazer aquilo de que mais gosta. Saiu da Amazônia impressionado. “Não comparo a pororoca com nenhuma onda que surfei. Ela se transforma várias vezes. Por ser longa, não é preciso ter pressa para fazer manobras. Enquanto se surfa, dá para curtir o visual da floresta.” Burle fez parte de uma expedição da qual participaram o santista Picuruta Salazar, o conterrâneo Eraldo Gueiros e o australiano Ross Clark Jones. Segundo Burle, até o gringo da terra dos cangurus disse nunca ter visto nada igual. Pelo jeito, logo o pico vai estar crowdiado. Traduzindo: em pouco tempo, vai haver congestionamento nos rios da Amazônia.

O fenômeno

O termo pororoca vem do tupi, porórka, grande estrondo. E os índios tinham razão. O encontro das águas do oceano Atlântico com os grandes rios amazônicos pode ser escutado duas horas antes da chegada da enorme onda. Nesse período, há uma calmaria
na floresta. Pássaros, animais e caboclos se aquietam, numa manifestação de medo e respeito pelo fenômeno capaz de arrasar
tudo o que está à sua frente.

A pororoca ocorre na mudança das fases da lua e se dá com maior intensidade entre as luas cheia e nova, nos meses de janeiro a maio e setembro a dezembro. O estrondo começa quando as águas da maré vindas do oceano chegam à foz de um rio, provocando elevações que alcançam dezenas de metros de altura. Estas viajam a velocidades que podem chegar a 50 km/h. As populações ribeirinhas criaram diversas lendas e mitos para explicar sua origem. A mais famosa é a dos três pretinhos. Segundo ela, os sapecas viriam com a grande onda quebrando e destruindo árvores, casas, embarcações, pranchas, surfistas… Reza a lenda que é preciso pedir autorização a eles para entrar no rio em dia de pororoca.