abismosemfim1_74.jpg

FARTURA Inês Appel retira R$ 20 mil por mês: “Não me importo muito com roupas, mas não abro mão dos meus cachorros”

 

O economista Edmar Bacha cunhou, em 1974, a expressão Belíndia para definir o que seria a distribuição de renda no Brasil. Para ele, um dos criadores do Plano Real e hoje consultor sênior do Banco Itaú BBA, o estrato econômico do País era uma mistura entre uma pequena e rica Bélgica e uma imensa e pobre Índia. Passados 33 anos, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou que pouco, ou quase nada, mudou neste abismo que separa os ricos dos pobres brasileiros. A pesquisa divulgada na semana passada mostra que, quando se trata de consumo, os 10% do topo da pirâmide gastam dez vezes mais do que os 40% da base. Traduzindo em números: estamos falando de uma despesa média por pessoa de R$ 1.815 dos mais ricos contra R$ 179 dos mais pobres. Este é o resultado da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada com dados de 2002 e 2003, sobre como cada família distribui seus gastos por mês.

Os dados ganham corpo e vida na família do paulista Antônio Carlos Assunção, 32 anos, casado e pai de dois filhos. Assunção é pedreiro e junto com a renda da mulher, a doméstica Maria Luci, apura pouco mais de R$ 1.200 mensais. O orçamento familiar chega ao fim do mês no vermelho: são R$ 300 do supermercado, R$ 100 de remédios, R$ 150 de material de construção e R$ 600 do financiamento da casa num empréstimo obtido com a cunhada, além de outros R$ 250 de itens para sua neném de sete meses. “Vivo fazendo malabarismo. Preciso saber distribuir as contas para equilibrar. E mesmo assim não dá”, diz ele. “Tenho que pedir fiado na quitanda antes do mês acabar”, conta. Quando a situação aperta e ele não tem dinheiro para o transporte, vai trabalhar a pé mesmo.

Na outra ponta da tabela, está a empresária Renata Pereira Jorge, 35 anos, sócia de seu marido, Godim Coutinho, numa imobiliária em Belo Horizonte (MG). Por mês, o casal faz uma retirada de mais de R$ 20 mil. “Não vivemos com luxo, vivemos uma vida confortável”, diz Renata.

CARTÃO DE CRÉDITO
Com os filhos cursando universidade pública, o maior gasto do casal ocorre no cartão de crédito: são R$ 8 mil por mês com restaurante, supermercado e programas culturais; R$ 1.200 com conta de celular, R$ 500 de plano de saúde, R$ 1.200 de cabeleireiro, R$ 1.800 com os salários dos empregados da casa e R$ 1.200 com gasolina (eles moram num sofisticado condomínio na região metropolitana de Belo Horizonte) – além de cerca de R$ 3 mil com viagens.

Estilo de vida ainda mais confortável leva a carioca Inês Appel, 56 anos. Casada e com dois filhos já adultos, ela gasta boa parte dos R$ 20 mil mensais retirados de pro-labore da fábrica de molhos prontos para salada que possui com o que ela classifica como “prazeres da vida”. “Roupa é o de menos nas minhas despesas, mas não me importo em gastar R$ 5 mil com meus 15 cachorros, que busco nas ruas”, conta Inês, que também investe em mini-cavalos. Viajar é rotina para ela. Além de visitar outros países, Inês tem uma casa em Campos do Jordão, outra na praia de Cananéia, no litoral sul do Estado, e um barco de 21 pés com o qual passeia nos finais de semana.

Entre os vários recortes que os dados do IBGE possibilitam, fica claro que investir em educação aumenta a renda familiar e pode ser um fator importante de ascensão social. Quando ninguém tem nível superior, as despesas e os rendimentos médios mensais ficam em torno de R$ 1.200. Se uma pessoa conseguiu concluir a faculdade, a família já muda de patamar e praticamente entra no clube dos 10% mais ricos. Na hipótese de mais de uma pessoa ter curso superior há um novo salto: a renda média familiar por mês passa para R$ 6.994 e os gastos alcançam R$ 6.591.

DISPARIDADES
Como em 84% dos domicílios brasileiros não há uma pessoa sequer com diploma universitário, é fácil entender por que a renda per capita é baixa no Brasil. “Há também um componente cultural. A divisão por classe social aqui é muito forte, os formados se agrupam na mesma família”, diz o economista Sergei Soares, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Na Europa, uma PhD se casa com um carpinteiro. Isso ameniza os efeitos da concentração no mercado de trabalho."

abismosemfim2_74.jpg

CARÊNCIA Antônio Assunção, com renda de R$ 1.200, vive em apuros

A disparidade entre ricos e pobres fica evidente nas despesas com saúde. Para os 10% mais ricos – quem tem renda familiar superior a R$ 3.876 – é a mensalidade do seguro-saúde o que mais pesa. Com pouco acesso a planos privados, os 40% mais pobres – famílias com rendimentos de até R$ 758 – comprometem quase metade do dinheiro destinado a tratar de doenças apenas com remédios. “Isso indica que esta população adoece mais, se automedica e não tem acesso a diagnósticos e prevenção”, diz a socióloga Lilibeth Cardoso, responsável por esta parte da pesquisa do IBGE.

GASTO COM REMÉDIOS
A aposentada baiana Maria Gomes Pereira de Medeiros, 73 anos, encaixa-se neste perfil. De sua pensão de R$ 380, ela deixa R$ 60 todos os meses na farmácia. Não tem plano de saúde e só usa hospitais públicos. Mãe de 12 filhos, dos quais oito já morreram, ela mora com o neto de 16 anos num imóvel comprado décadas atrás. Entre suas despesas fixas estão R$ 30 de água, R$ 70 de luz, R$ 150 de supermercado e R$ 15 como ajuda para a escola para o neto. Ela complementa a renda vendendo sacolas de plástico na porta do Mercado da Lapa, na capital paulista, e chega a tirar R$ 5 por dia. É com este dinheiro extra poupado o ano inteiro que ela se dá um presente por ano: ir à Bahia em janeiro ver um dos filhos, pai de cinco dos seus netos. “Essa viagem é sagrada”, diz ela. “Meu filho ganha salário mínimo e não tem condição de vir me ver.”