Assumir uma dependência em relação às drogas e aceitar que é preciso recorrer à ajuda especializada não é fácil para a maioria das pessoas. Entre os médicos, então, pode ser mais difícil ainda. O preconceito vem de todos os lados. Colegas, pacientes e um insistente estigma de que esse profissional é quase um deus afastam os doutores envolvidos com drogas, lícitas ou ilícitas, dos tratamentos e, consequentemente, da recuperação. Foi exatamente por causa da constatação de que essa dificuldade em procurar auxílio só aumentaria o número de dependentes que a Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp) e o Conselho Regional de Medicina (CRM), seção
São Paulo, resolveram criar uma rede de apoio aos médicos
dependentes químicos.

O programa conta com 30 psiquiatras espalhados por várias regiões de São Paulo. Eles estão disponíveis para atender voluntariamente os médicos, que poderão pagar ou não pelo tratamento. A rede oferece ainda dez clínicas para internação, caso seja necessário, e coloca à disposição dos dependentes e de seus familiares dois telefones, um deles funcionando 24 horas e o outro para informações. Essa rede está baseada em modelos internacionais que já existem há muito tempo e rendem ótimos resultados, de acordo com o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador do projeto. “As taxas de recuperação desses médicos no Exterior nos deram ânimo. Muitas chegam a 90%”, conta.

No Brasil, é a primeira vez que o CRM e uma universidade se envolvem em um projeto desse tipo. A decisão de topar a empreitada veio depois que uma pesquisa qualitativa feita no ano passado pelas duas instituições com 206 profissionais paulistas mostrou o estrago que a dependência química pode fazer. A maioria dos entrevistados era homem e com idade média de 39 anos. Cerca de 30% já tinham sido internados por causa da dependência. Porcentual semelhante havia sido demitido durante algum período do ano anterior à pesquisa. As substâncias mais consumidas pelos médicos eram álcool, cocaína, tranquilizantes e maconha (nessa ordem). E os maiores usuários eram os clínicos gerais, anestesistas, cirurgiões, pediatras, ginecologistas, obstetras e psiquiatras.

Na maioria dos casos, os médicos consomem as drogas fora dos locais de trabalho, e os pacientes quase sempre nem percebem que o profissional fez uso de alguma substância. Eles recorrem às drogas muito em razão do stress da profissão, que os obriga, por exemplo, a acumular empregos e a tomar decisões importantes rapidamente. No entanto, eles relutam em procurar ajuda. “Os médicos muitas vezes acham que podem resolver o problema sozinhos, até para não terem que procurar seus colegas. Mas isso piora o problema”, explica Gabriel David Hushi, presidente do CRM/SP. Hushi faz questão de frisar que, ao procurar o serviço, os médicos encontrarão tratamento, e não preconceito ou fiscalização. “Nosso objetivo é recuperá-los”, garante. Laranjeira tem certeza de que a participação do Conselho não assustará os médicos. “O vínculo com
o Conselho dá seriedade, caráter oficial ao trabalho e não de
controle”, acredita.

Quem já esteve do outro lado aprova a iniciativa. José Antônio Ribeiro da Silva tem 51 anos e há dez é psiquiatra especialista em dependência química. Antes disso, como clínico geral, ele passou por maus bocados por causa do envolvimento com drogas. “Cheguei no fundo do poço”, lembra. Hoje, assume o que passou. “É preciso mostrar a cara para que as pessoas entendam que o médico é um ser humano como outro qualquer. Erra, adoece e também se recupera”, diz. Silva tem certeza de que a rede facilitará a volta por cima de quem vive o que ele viveu. “Eu tive força. Um dia acordei com a sensação de que ia morrer e por isso procurei ajuda. Mas sei que essa decisão não é fácil”, admite.