A chamada guerra fria, que opunha os Estados Unidos à União Soviética no século passado, parecia ter sido enterrada há cerca de dez anos. No entanto, novos coveiros foram arregimentados para repetir na quarta-feira 14, em Reykjavik, capital da Islândia, o sepultamento. Os 19 membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental) aprovaram acordo aceitando a Rússia como parceira, com quase todos os direitos de associada, naquela aliança militar. Um fato histórico, ainda que um tanto paradoxal, já que a Otan foi fundada em 1949 justamente para enfrentar a força militar russa. Moscou terá, assim, direito a opinar sobre questões como combate ao terrorismo, controle de armas e gerenciamento de crises internacionais, além de contribuir com armas e pessoal em ações conjuntas da organização.

O anacronismo desta assimilação foi explicado por George Robertson, secretário-geral da Otan: “Juntos, os países que passaram quatro décadas rosnando uns aos outros sobre um muro de ódio e medo têm agora a oportunidade de tornar melhor a segurança euro-atlântica.” O que levou o ministro do Exterior inglês, Jack Straw, a declarar, mais uma vez, o “funeral da guerra fria”. Já seu colega americano, o secretário de Estado, Colin Powell, foi mais comedido e disse que: “Ainda não temos um clichê que capture este evento.” Em termos de chavão, alguém poderia ter sugerido ao secretário Powell o velho “acender uma vela a Deus e outra ao diabo”. Isso porque, naquele mesmo dia em que o ministro do Exterior russo, Igor Ivanov, colocava seu jamegão no acerto com a Otan, não muito longe dali, em Moscou, várias repúblicas das ex-URSS também assinavam documento criando um “novo Pacto de Varsóvia”, a antiga aliança militar rival da Otan.

Esfera de influência – O presidente russo, Vladimir Putin, disse que essa espécie de Pacto de Varsóvia light “não está especificamente dirigida contra alguém em concreto, mas sim contra as ameaças que o mundo enfrenta hoje”. Deste modo, Armênia, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Rússia juntaram-se num bloco militar. O que parece demonstrar que a guerra fria é um cadáver que teima em sair do túmulo. Os analistas políticos russos acreditam que Putin teria recriado a parceria com estas nações da Ásia central para recuperar a perda de influência de seu país na região, depois da guerra no Afeganistão. Além disso, estaria mostrando aos linha-dura de suas Forças Armadas que não teria se vendido ao Ocidente.

Todos esses eventos se deram apenas um dia depois de americanos e russos terem anunciado que chegaram a outro acordo envolvendo a redução em um terço de seus arsenais nucleares. A decisão também não foi muito bem-vista pelos meios mais nacionalistas da Rússia. “Na verdade, há um mal-estar entre a elite militar russa”, diz o analista Sergei Shenine, da Universidade Estatal de Saratov. “Logo no início do governo George W. Bush, com a decisão de denúncia unilateral do ABM (tratado de limitação de sistemas antimísseis firmado em 1972 entre Richard Nixon e Leonid Brejnev), a impressão que se teve foi a de total desrespeito à Rússia. O acordo de agora, reduzindo em um terço as ogivas nucleares dos dois países, pode ser assimilado erradamente pelos militares russos como uma capitulação do país aos EUA. E, apenas um dia depois do anúncio do acordo para a redução do arsenal, vem essa assinatura de associação com a Otan. O orgulho próprio de alguns setores das Forças Armadas russas poderia ficar muito ferido e complicar o governo Putin. Era preciso salvar as aparências, e por isso o acordo com as ex-repúblicas soviéticas foi assinado no mesmo dia daquele da Otan”, diz Shenine. É preciso lembrar que vários países do ex-bloco soviético – como Polônia, Hungria, República Tcheca e as Repúblicas Bálticas – solicitaram há anos o ingresso na Otan, aumentando o sentimento de cerco da Rússia.

Interesses econômicos – De todo modo, o professor Mikhail Kirsenko, do Departamento de História da Academia Kyiv-Mohyla, na Rússia, também aponta para fatores que teriam obrigado Putin a sacar da caneta e desenhar um futuro mais próximo do Ocidente. “Esta redução do arsenal de ogivas nucleares atende aos interesses prementes da economia russa. A manutenção deste arsenal custa caro e não faz sentido. Com um décimo das ogivas que a Rússia ou os EUA têm agora, os dois países ainda são capazes de destruir o planeta várias vezes. Assim, o corte nos arsenais vai atender muito mais às necessidades financeiras do que às aspirações de paz. A Rússia, mais do que qualquer outra potência nuclear, precisa dessa economia”, diz Kirsenko. Ele também tem uma explicação interessante para a formação do Pacto de Varsóvia light. “Além de manter aparências políticas de independência do Ocidente, a nova união de países da Ásia central também vai permitir um melhor controle de Moscou sobre o contrabando de equipamentos e tecnologia nuclear a outros países. Há muito tempo, o Ocidente vinha reclamando da repassagem de tecnologia nuclear a países como o Irã. Sabe-se hoje que Teerã conseguiu sua bomba atômica com a ajuda de cientistas e de materiais russos. Imagine se Saddam Hussein – ou qualquer grupo terrorista – também tiver o mesmo acesso. O modo de diminuir essa sangria de recursos materiais e humanos é manter ligação militar firme na região. Esse novo acordo com as ex-repúblicas soviéticas, na verdade, também é do interesse dos membros da Otan, que não desejam a proliferação de ogivas nucleares no mundo”, disse Kirsenko.

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