Paula Prandini/Divulgação

De La Serna e Bernal: viagem de oito meses pela América Latina, que só conheciam nos livros

Na introdução do livro De moto pela América do Sul – diário de viagem, o argentino Ernesto Guevara de la Serna (1928-1967) – na época com 24 anos e ainda não convertido no mitológico líder guerrilheiro da revolução cubana – adverte o leitor sobre o peso que aquele relato representava na sua vida. “A pessoa que tomou estas notas morreu no dia em que pisou novamente o solo argentino. A pessoa que está reorganizando e polindo as mesmas notas, eu, não sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era antes. Esse vagar sem rumos pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que me dei conta.” Diários de motocicleta (Diarios de motocicleta, Inglaterra/França 2004), que estréia no País na sexta-feira 7 e concorre à Palma de Ouro no Festival Internacional do Filme de Cannes, segundo o diretor Walter Salles, é o desenrolar da “transformação paulatina, quase silenciosa” a que Che Guevara se refere. Filmado na Argentina, no Chile e no Peru em 30 locações, num arco de 20 mil quilômetros, este autêntico filme de formação rediscute o ideário de uma época ao reproduzir a viagem que Guevara – então um estudante de medicina com especialização em hanseníase – e o bioquímico Alberto Granado fizeram pela América Latina em 1952 com o intuito de mergulhar num continente conhecido por eles apenas pelos livros.

Montados numa motocicleta Norton 500, ano 1939, a mítica La Poderosa, que, apesar do codinome, não suportou o rigor da empreitada, eles viram paisagens esplêndidas, se embriagaram, viveram encontros fortuitos, mas também enxergaram a miséria, o abandono e a exploração. Durante oito meses, enfrentaram a altitude dos Andes, a umidade da Floresta Amazônica, a aridez dos desertos chilenos, exatamente como a equipe do filme, que reproduz fielmente a maior parte da viagem da dupla motoqueira. O grande desafio da fita, feita com atores latino-americanos, falada em espanhol e que de brasileira só tem a assinatura de Walter Salles, era desenhar um retrato de Che Guevara que não se perdesse na banalidade do ícone pop vendido em pôsteres e camisetas.

Graças à interpretação detalhista e interiorizada do ator mexicano Gael García Bernal (Amores brutos) e à maturidade cinematográfica de Salles, Diários de motocicleta cumpre com brilho seu objetivo, não esquecendo de dar o devido peso ao companheiro de viagem Alberto Granado, hoje com 82 anos, encarnado com perfeccionismo pelo argentino Rodrigo de la Serna, parente distante de Guevara. “Para realizar o filme, eu li as biografias de Jon Lee Anderson, de Paco Ignazio Taibo e de Carlos Castañeda e mergulhei num projeto de pesquisa que tomou cinco anos”, afirmou Salles a ISTOÉ. “O que saiu desse processo todo é a certeza de que Ernesto Guevara era uma das poucas pessoas que diziam o que pensavam e depois faziam aquilo que diziam. Essa grande coerência, não somente no discurso, mas nos atos que o acompanham, é único no mundo contemporâneo.”

Bernal, que já havia interpretado o guerrilheiro num telefilme de David Attwood, considera a experiência anterior apenas uma preparação para a atual. “Aquele foi um filme que não serviu para nada, mas para me encorajar a fazer o personagem melhor”, disse o ator de 25 anos a ISTOÉ. Bernal é hoje o grande astro latino e sua encarnação de Che coincide com o papel triplo no novíssimo La mala educación, de Pedro Almodóvar, no qual em algumas cenas interpreta um travesti. Perguntado sobre os personagens, Bernal desconversou. “Foi uma filmagem muito intensa, forte e enriquecedora. É uma história muito complicada. Qualquer coisa que eu disser vai tirar a surpresa.” Ao ser lembrado que Almodóvar o achou a cara de Julia Roberts depois de travestido, ele brincou: “Oxalá eu esteja tão gostoso.”

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Salles e Granado: diários do bioquímico serviram de base
para o cineasta

Egresso da cena teatral argentina, o atlético Rodrigo de la Serna engordou sete quilos e assumiu uma engraçada postura encurvada para dar vida a Alberto Granado. “Foi tudo fruto de observação”, conta De la Serna, comparado por Salles aos italianos Vittorio Gassman e Alberto Sordi. A interação da dupla é um dos trunfos da fita, que se inicia como um road movie em duas rodas envolto em lances picarescos. Não à toa, antes de zarpar, Granado chama La Poderosa de Rocinante, numa referência ao cavalo de Don Quixote. Sem um centavo no bolso, eles vão contabilizando quilômetros e forrando o estômago usando uma lábia descarada. Num bar da cidade de Temuco, no Chile, a dupla lança mão de um golpe perfeito. Granado diz para duas garotas que eles estão comemorando um ano de estrada e não têm um centavo para um trago de vinho. Elas pedem uma garrafa e é a vez de Guevara dizer que, segundo uma tradição argentina, não se pode beber de estômago vazio. É a dica para as mulheres pagarem uma rodada de empanadas. O Granado real, cujo diário Con el Che por Sudamérica também serviu de base para o roteiro, explica as gracinhas. “Sou de Córdoba. Quem nasce lá tem um sentido especial de humor. E ao cair de uma moto é melhor rir que lamentar a dor.”

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O Guevara verdadeiro e a mítica motocicleta: estudante de medicina aventureiro

Inovação – Fiel ao espírito da dupla, Salles inova o seu estilo com diálogos espirituosos. Antes de os argentinos darem adeus a La Poderosa, por exemplo, um mecânico faz o diagnóstico da moto, dizendo que os viajantes podem agora chamá-la de A Defunta, A Paralítica, A Paraplégica. Já convertidos em pré-hippies, quando chegam a Machu Picchu, no Peru, adotam como guia um garotinho índio. Perguntado sobre quais são as pedras incas e quais as colocadas nas muralhas pelos colonizadores espanhóis, ele responde: essas são dos incas e essas dos inca-pazes. Outros momentos leves são as diversas cenas de dança nas quais La Serna se exibe como dançarino. Mas, aos poucos, a diversão vai cedendo espaço à gravidade, num efeito cumulativo e “em camadas” que Salles atribui à influência do filme Il sorpasso, de Ettore Scola, sobre dois italianos em viagem pela Itália. É quando Che e Granado passam a entrar em contato com a injusta realidade social vivida pelos descendentes de índios, situação que se mantém imutável há meio século.

O crescendo de conscientização culmina com a festa de aniversário de Guevara na colônia de leprosos de San Pablo, perto de Iquitos, no Peru. Hospedado em meio a médicos e freiras, o jovem estudante resolve comemorar a data com os doentes, segregados na outra margem do rio Amazonas. Asmático desde a infância, ele decide se superar fisicamente atravessando o rio a nado. Suas braçadas em direção aos marginalizados têm caráter simbólico, anunciado momentos antes, quando em discurso agradece a hospitalidade e prega a unidade da América Latina. É um lampejo do Che Guevara que, dois anos depois, vai integrar o grupo rebelde de Fidel Castro, no México. “Para mim, esse sempre foi um filme que fala sobre a margem do rio que você elege para viver o resto da vida. Por isso demos ao ato da travessia mais valor do que a descrição do livro. Naquele momento, Guevara deixa de lado a possibilidade de ser um médico para ser um médico do povo”, explica Salles. A observação é creditada a Granado – espécie de “consultor especial” do filme –, o homem que reconheceu o corpo de Guevara ao ser morto na Bolívia, em 1967. Numa das imagens-sínteses do diretor, Alberto Granado é homenageado ao ser visto no aeroporto de Havana, o rosto coberto pelas rugas do tempo, olhando um avião que se esconde nas nuvens.