Eles não usam alianças, não podem firmar matrimônio em cartório nem adotar filhos. Mas existem por toda parte e, há sete anos, esperam a aprovação do projeto de parceria civil entre pessoas do mesmo sexo. Na segunda-feira 13, os casais homossexuais ganharam um novo aliado. Na cerimônia de lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos, desenvolvido pelo Ministério da Justiça, Fernando Henrique Cardoso prometeu se empenhar pela aprovação da lei e até posou sorridente com a bandeira do movimento GLS nas mãos. Acabou despertando intensas discussões de corredor entre os líderes gays. “Pela primeira vez um presidente da República assumiu que os homossexuais têm necessidades políticas. Mas não basta a intenção”, sinalizou o carioca Cláudio Nascimento, presidente do grupo Arco-íris, uma das 90 organizações de defesa dos direitos dos homossexuais. “Se quisesse aprovar o projeto, o governo já o teria feito. Foi tão fácil para ele assinar a reeleição e a CPMF”, alfineta Beto de Jesus, presidente da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros de São Paulo.

O detonador da polêmica foi um jovem militante de Brasília de apenas 23 anos. Presidente do grupo Estruturação, Welton Trindade venceu a barreira de segurança do presidente e entregou a ele a bandeira com as seis cores. “Nunca imaginei que o Fernando Henrique fosse tão amável e tomasse a iniciativa de virar-se na direção dos fotógrafos, erguendo o símbolo mundial do movimento gay”, comemora Trindade. Um diálogo rápido foi trocado entre os dois. “Presidente, lute pela cidadania dos homossexuais”, disse Trindade. “Com certeza”, respondeu FHC, segundo o líder. Depois de aparecer ao lado do presidente nas primeiras páginas dos principais jornais do País e na tevê, Trindade tornou-se uma figura conhecida na capital federal. “Estou sendo até cumprimentado nas ruas. Foi uma loucura que deu certo”, festeja.

Apesar de reconhecer a importância do apoio oficial do presidente, a maioria dos casais homossexuais fez coro com os políticos da oposição e taxou de eleitoreira a declaração de FHC. Entre eles, a prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. Autora do projeto de parceria civil entre pessoas do mesmo sexo apresentado à Câmara em 1995, a ex-deputada é irônica ao comentar os interesses do presidente. “O projeto está pronto para votação em plenário na Câmara desde 1999, mas nunca foi liberado pelo executivo. É estranho que isso aconteça agora, em final de mandato. Acho que eles não têm muito o que mostrar na área de direitos humanos e sabem que esta é uma luta reconhecida mundialmente”, sugere a prefeita. “Caso não ocorra um empenho de fato do Fernando Henrique e tudo fique para o próximo mandato, terá sido uma perversidade inominável com milhares de cidadãos e cidadãs que têm esperança de ver sua vida respeitada”, dispara.

A torcida para que a aprovação da lei deixe de ser apenas uma promessa eleitoral é grande. “Estaremos na fila para assinar a parceria assim que houver esta possibilidade”, promete a jornalista Anna Braga, 42 anos, que há três anos e meio mora com a engenheira de produção Sônia Alves, 37. As duas se conheceram pela internet e, três meses depois, já dividiam o mesmo apartamento e o mesmo escritório. Juntas, montaram o site GLS Planet, um dos mais visitados portais dedicados ao público gay no Brasil. “Vamos lançar um concurso. O primeiro casal homossexual que assinar a parceria civil depois de aprovada a lei vai ganhar do GLS Planet uma viagem de lua-de- mel”, anuncia Sônia. “É fundamental que todo casal tenha o direito de estabelecer a união civil, mesmo que não queira fazer. Da mesma forma que muito casal hetero prefere apenas morar junto. Mas tenho certeza de que a maioria vai entrar na fila”, aposta. É importante lembrar que os casais heteros são ainda favorecidos pela Lei do Concubinato, que dá a eles direitos civis após cinco anos de união.

As maiores reivindicações dos homossexuais que lutam pela parceria civil estão relacionadas a questões práticas como a possibilidade de ter o companheiro como dependente no plano de saúde ou o direito de receber pensão e herança. A batalha por equidade de condições tem sido apresentada como diferencial até na hora de promover um hotel em Fortaleza. A construtora G&G Empreendimentos Turísticos inaugura no domingo 26 o Absolut Resort, na praia da Lagoinha, considerado o único resort GLS da América Latina e o primeiro a reconhecer duas pessoas do mesmo sexo como casal na venda de títulos. “Se a lei de parceria civil sair, vou querer me casar. Hoje, somos um casal de fato, mas não de direito”, comenta o editor Luiz Carlos Freitas, que há quatro anos vive no Rio de Janeiro com o ator e professor surdo-mudo Nelson Pimenta, 38 anos. “Trata-se de ratificar nossa relação”, comenta Nelson por meio de sinais.

Fantasias – Tanta polêmica em torno da proposta de lei e de tudo o que se relaciona ao assunto justifica-se pela falta de naturalidade com que o brasileiro ainda encara a existência de casais homossexuais. Vítimas de constantes manifestações de preconceito, os gays foram sempre obrigados a esconder sua sexualidade e raramente se permitem a prática do afeto em público, o que só faz aumentar o desconhecimento da sociedade. “É comum os heterossexuais ficarem surpresos quando descobrem que um amigo do escritório é casado com alguém do mesmo sexo. Eles não imaginam o que acontece na vida íntima desses casais e fantasiam coisas”, avalia o psicoterapeuta paulista Klécius Borges, também homossexual. “Não entendem que a vida de um casal gay é igual à de qualquer outro. Acham que eles levam uma vida promíscua, cheia de casos extraconjugais e orgias”, diz.

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Foi com o intuito de desfazer esse estereótipo que a sexóloga carioca Maria de Fátima Leite Ferreira, 48 anos e heterossexual, resolveu pesquisar a comunidade gay para desenvolver seu projeto de mestrado, apresentado no final de 2001 na Universidade Gama Filho. Após entrevistar 15 casais de mulheres e 15 casais de homens que coabitam há pelo menos dois anos no Rio de Janeiro, ela descobriu, por exemplo, que a tradicional divisão entre ativos e passivos não existe para 70% dos casais, tanto de homens quanto de mulheres, e que fidelidade e afeto são mais valorizados do que se pensa. “A sociedade tem dificuldade em aceitar o universo gay por falta de informação”, resume a terapeuta. Todos os casais que pesquisei têm estabilidade e um sentido de família muito grande”, observa Maria de Fátima. Ela computou 56,6% de homens que atribuíram importância à fidelidade, enquanto 90% das mulheres disseram o mesmo.

O cabeleireiro e maquiador carioca Osvaldo Estrela, 38 anos, é um exemplo. Há 11 anos, vive com o também maquiador Marcelo Mangueira, 30. “Sou totalmente fiel. Sempre fui. Tive apenas três relacionamentos na vida e dou muita importância à credibilidade e ao respeito”, conta.

O profissional de marketing Eduardo Castelo, 35 anos, partilha a mesma opinião. “Não concordo nem aceito traição. Confio no Augusto, mas sou ciumento e visceral. Se é para ter algum relacionamento esporádico, fico solteiro. Quando se assume uma relação, a fidelidade é essencial”, opina, após um ano e meio morando na casa do promotor de eventos Augusto Tiburtius, 32 anos. “Se você ama, não tem necessidade de transar com outros. Se tiver, é melhor não casar. Optei por viver com o Edu e vamos construir algo juntos. Já fui muito festeiro durante uma fase, mas hoje quero compromisso”, explica Augusto. “Meu projeto atual é encontrar um apartamento maior. Vamos estruturar uma família”, sinaliza.

Constituir família é outra reivindicação constante para a comunidade gay. Talvez a impossibilidade de ter filhos biológicos seja a maior diferença concreta entre os casais homo e heterossexuais. Como a adoção de crianças por uma única pessoa é proibida, o desejo de ter filhos acaba sendo compulsoriamente sufocado. Por isso, a luta pelo direito à adoção é outra trincheira do movimento que ganha cada vez mais soldados. O próprio projeto de parceria civil passa ao largo desta possibilidade. Mas o apoio à aprovação do direito à adoção por casais de homossexuais também foi sinalizado pelo governo no mesmo Programa Nacional de Direitos Humanos que prometeu se empenhar para autorizar também, em data não estipulada, o direito à alteração de registro para homens e mulheres que tiverem realizado operação de mudança de sexo.

Mesmo impossibilitados de adotar crianças, há muitos casais de homossexuais com filhos no País. Alguns lançaram mão de casamentos de fachada para consumar a adoção. Outros realizaram a famosa “produção independente”, como a artesã Sirleide Paiva, 36 anos, coordenadora do núcleo de lésbicas da organização Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor (Corsa) e conhecida como Pink. Ela namora Simone, 28, há quatro anos, e tem dois filhos biológicos. “Tenho um irmão que não fala comigo porque sou lésbica. Já minha mãe diz que sou a filha mais bem casada”, diz. Os filhos, Bruno, 15 anos, e Dimitri, dez, nunca perguntam sobre o pai e já estão acostumados em apresentar os amigos à namorada da mãe. “A turma vem brincar aqui em casa e não fica constrangida. Também faço questão de abrir o jogo para os pais dos amigos deles e para as professoras da escola”, conta Pink. Dimitri e Bruno já acompanharam a mãe e a namorada duas vezes na Parada do Orgulho Gay. O menor tem até uma camiseta do evento, com as iniciais de Gays, Lésbicas e Simpatizantes com um S bem grandão


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