Ninguém viu nada. Todos calados”, determinou o coronel da Polícia Militar Mário Colares Pantoja ao entrar no ônibus da Viação Transbrasiliana que transportava sua tropa: “Missão cumprida.” Seis anos e 30 dias depois, as ordens emitidas ao final da operação que culminou com a morte de 19 sem-terra em Eldorado do Carajás, no sul do Pará, revelaram-se inócuas. Até a estratégia passa-borracha, que o oficial atualmente renega, foi relembrada na semana passada pelo motorista do ônibus, Pedro Alípio da Silva, durante a primeira sessão do julgamento do massacre. Comandante da operação que visava liberar trecho de uma estrada ocupada por mais de mil sem-terra, o coronel Pantoja acabou condenado a 228 anos de prisão, 12 anos para cada um dos 19 homicídios. Ele acompanhou impassível a leitura da sentença. Embora esteja na reserva, usou uma viatura da Polícia Militar para deixar o tribunal, pouco antes do amanhecer da quinta-feira 16.

No carro oficial, Pantoja estava acompanhado pelo capitão Raimundo Almendra Lameira, seu auxiliar no comando da operação, que foi absolvido pelo mesmo júri. Desde o começo da sessão, na manhã da terça-feira 14, o coronel e seus advogados tentaram responsabilizar o governador Almir Gabriel (PSDB) pelo massacre. “O governador mandou desobstruir a pista da rodovia a qualquer custo”, garantiram. “Um dos advogados do oficial, Roberto Lauria, argumentou que, em Eldorado do Carajás, o papel de comandante de Pantoja era fictício. “Ele não comandava nada”, disse Lauria. “É uma vergonha o governo do Estado não estar neste processo.” Em 1999, no entanto, o próprio Almir Gabriel teve de discorrer sobre sua participação no episódio. Em depoimento prestado à Justiça, assegurou que o responsável pela liberação da estrada era o coronel Pantoja. Na ocasião, o governador ressaltou que a PM sempre teve autonomia para conduzir as negociações com o MST.

Na tarde em que sem-terra e PMs se enfrentaram em condições desiguais não se registrou tentativa de negociação. Na batalha travada entre os peritos que atuaram no caso também foram raros os pontos convergentes. Convocado pelo Ministério Público, o perito Ricardo Molina analisou a única fita de vídeo gravada durante o confronto pela TV Parauapebas, afiliada do SBT no Pará. Seu laudo, revelado por ISTOÉ em setembro de 2000, identificou imagens impossíveis de se observar numa exibição usual, pois cada segundo da fita foi desdobrado em 33 frames ou cenas. “Há fortes evidências de que aconteceram tiros em direção dos sem-terra com intenção de matar ou ferir”, concluiu Molina. No laudo, ele ainda demonstra que o primeiro disparo foi feito por um PM e havia pelo menos um ferido antes do revide dos sem-terra. O cinegrafista Osvaldo Araújo, que registrou as imagens, deu informações que reforçam a análise de Molina. “Vimos a polícia atirando contra os sem-terra, mas não vimos os trabalhadores atingindo a PM”, declarou Araújo no tribunal.

Considerado pela acusação como uma das peças principais do processo, o laudo de Molina e o próprio perito foram questionados pela defesa de Pantoja. “É um laudo feito de encomenda pelo Ministério Público”, depreciou o advogado Américo Leal. A Pantoja e a seus advogados interessava mais as análises do médico legista Fortunato Badan Palhares, o mesmo que concluiu que PC Farias, caixa de campanha do ex-presidente Collor, havia sido vítima de um crime passional. Convocado pela Secretaria de Segurança do Pará, Badan preparou dois trabalhos com base nos laudos dos 19 cadáveres dos sem-terra, feitos por peritos do Estado. “O governo do Pará desejava mostrar que não tinha nada a esconder”, lembra o diretor do Instituto de Criminalística, Joaquim Araújo. Badan concluiu que, “se houvesse intenção de matar, centenas de pessoas teriam sido mortas”. No parecer, ele também ressalta o fato de os sem-terra terem sido vítimas de armas brancas, cortantes, “não usadas pelas forças policiais”. No julgamento, soube-se que, pelo menos, 60 policiais de Parauapebas – que participaram do confronto – usam habitualmente armas brancas por pertencerem a um pelotão florestal.

O MST, que considera o julgamento uma farsa, decidiu só se manifestar no final do processo. “Infelizmente, a Justiça do Pará não tem credibilidade”, aponta o frei Henri Des Rosiers, que é advogado e integra a Comissão Pastoral da Terra. “Nos últimos 30 anos, 714 pessoas morreram por causa de conflitos de terra no Estado e só duas foram condenadas,” afirmou. Pantoja recebeu uma condenação pesada, mas continua fora das grades. Como é réu primário, tem o direito de recorrer em liberdade. O Ministério Público já se prepara para questionar a absolvição do capitão Lameira. Na terça-feira 21, será a vez do major José Maria Pereira Oliveira sentar no banco dos réus. Ele deveria ser julgado junto com Pantoja e Lameira, mas conseguiu sessão independente, sob o argumento de que estava distante do palco dos acontecimentos. Depois dos oficiais, será a vez de outros 146 policiais militares envolvidos no massacre acertarem suas contas na Justiça.

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