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DEFESA Frei Jacir Zolet diz temer que a ação dos quilombolas comprometa o trabalho social da ordem

 

Antes restrito aos meios políticos e acadêmicos, o debate da demarcação das regiões de antigos quilombos começa a envolver a sociedade à medida que novos territórios são reivindicados por descendentes de escravos. Normalmente travada em regiões rurais, a disputa chegou ao centro do Rio de Janeiro, em uma área conhecida como Pedra do Sal, onde funciona a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, fundada em 1619. Dez famílias reivindicam a posse da localidade, onde houve uma concentração de escravos. “Temos o laudo de um historiador dizendo que aqui nunca houve quilombo”, rebate o frei franciscano Jacir Zolet. O grupo de descendentes, no entanto, foi reconhecido como comunidade quilombola pelo governo. O processo corre no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “O conceito de quilombo previsto na lei leva em conta a identidade cultural”, explica Damião Braga, coordenador da Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo Pedra do Sal (ArqPedra). “Nossa demanda tem respaldo nas leis brasileiras e internacionais.”

O primeiro estopim da polêmica é o conceito de quilombo. Pelos tradicionais livros de história, trata-se da reunião de escravos fugidos que resistiam às tentativas de captura ou morte. “Fiz um levantamento e ali era um mercado que vendia escravos, nunca foi quilombo”, diz o historiador Milton Teixeira, autor do laudo feito a pedido da ordem franciscana. A diretora de Proteção do Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Palmares, Maria Bernadete Lopes, diz, no entanto, que a definição que serve de parâmetro à lei é bem diferente. “A legislação trata como quilombo o território que serve ou serviu para reprodução física, econômica e sociocultural”, explica ela. Teixeira rechaça a conceituação. “Isso é jogar a história na lata de lixo.”

O historiador reclama também da idéia de auto-reconhecimento. “Antropologicamente, não basta que apenas a pessoa se auto-intitule quilombola, a comunidade ao seu redor deve identificá-lo como tal”, destaca Teixeira. A integrante da Fundação Palmares, responsável pela certificação de 1.170 comunidades quilombolas em todo o Brasil, diz que segue a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. O documento define quilombo levando em conta a contribuição imaterial dos escravos, sua cultura e ação social.

Na Pedra do Sal, a polêmica tem ingredientes adicionais. De um lado, Damião Braga e outros moradores foram acionados pela Ordem Terceira com um processo de reintegração de posse, para serem desalojados dos imóveis que ocupam. De outro, o Incra questiona os documentos de propriedade da ordem religiosa sobre os imóveis. Há a comprovação da doação de 1704, um alvará de 1821, concedido pelo príncipe regente dom Pedro I, e uma certidão de 1942, que lista casas e terrenos. Não há, no entanto, o registro de cada um dos imóveis, como exige a lei. Outro complicador é a ação social que os franciscanos há anos empreendem no bairro. Eles mantêm duas escolas e 18 cursos profissionalizantes para 1.880 pessoas. “Se perdermos a propriedade, eles vão interromper nosso trabalho”, diz frei Jacir.

A afirmação é contestada por Braga. “Nunca dissemos isso”, afirma. O líder dos quilombolas acusa a ordem de colocar contra ele a comunidade carente do local e a responsabiliza por qualquer ato ofensivo que possa sofrer.