Ele passou semanas amargando o terceiro lugar nas pesquisas, patinando em torno dos 11% das intenções de voto, empatado com Anthony Garotinho (PSB). Perdeu importantes aliados nos Estados e foi alvo de toda sorte de especulações. Chegaram a dizer que o candidato oficial não tinha a menor chance de disputar o segundo turno com Lula e que renunciaria. A candidatura governista era um fiasco anunciado. Fingindo-se animado, o tucano José Serra lançava sempre uma metáfora futebolística: “Treino é treino, jogo é jogo.” Como o Palácio do Planalto esperava, o treino terminou com o início do horário eleitoral. E, depois de três programas, a frase de efeito mudou. Agora, Serra diz: “O jogo já começou e marcamos um gol, mas a partida termina dia 6 de outubro.” Esse gol que ele calcula ter marcado significa um crescimento de cinco pontos, em média, nas pesquisas, todos roubados de Ciro Gomes, da Frente Trabalhista (PPS-PDT-PTB). Lula, tranquilo na liderança, manteve seus cerca de 35 pontos. Mas, ao contrário do que se imaginava, a subida de Serra, o preferido do sistema financeiro, não foi suficiente para acalmar os ânimos do mercado. Na terça-feira 27, dia em que duas pesquisas registraram seu crescimento, o dólar esteve em baixa o dia todo, mas fechou em alta de 1,22%. Isto é: para o mercado, a subida de Serra nas pesquisas é uma boa notícia, mas ainda não é sinônimo de calmaria.

A tática ofensiva do time governista começou há um mês, quando Ciro estourava nas pesquisas. Foi o próprio Serra quem acionou o alarme. Alcançou os aliados de primeira hora por telefone e convocou uma reunião de emergência em São Paulo. Além dele, estavam lá o líder da Câmara, Jutahy Magalhães (BA), o prefeito de Vitória, Luís Paulo Velloso Lucas, os deputados Aloysio Nunes Ferreira, Alberto Goldman (SP) e Márcio Fortes (RJ) e o coordenador da campanha, Milton Seligman. “O adversário é o Ciro. Ou batemos nele ou acabou”, desabafou Jutahy. “Ele diz que sabe tudo. Sabemos que é inconsistente e tem compulsão pela mentira”, diagnosticou Serra, rememorando a convivência com o ex-correligionário. “Não vamos nos abater, vamos bater”, conclamou Goldman. À época, os marqueteiros aconselhavam o tucano a ignorar o candidato do PPS. “Serra aceitava, mas não se convencia”, relembra um dos participantes. Contra a vontade dos marqueteiros, ficou definida a estratégia de caneladas no adversário. Remanescia a dúvida quanto ao beneficiário dos ataques: se seria Lula ou o próprio Serra.

Sabe-se agora que o tucano foi o único a lucrar com a pancadaria. A avaliação positiva de seu programa nas qualitativas (18%) é superior ao seu índice de intenção de voto, o que representa tendência de crescimento. Além disso, analistas avaliam que o trabalho de Nizan Guanaes e Nelson Biondi, marqueteiros do tucano, e de Duda Mendonça, do time petista, tem mais ressonância na população que o de Ciro e de Garotinho. “Os programas de Lula e de Serra apresentam propostas de maneira clara. As idéias de Ciro são abstratas e o programa, como o de Garotinho, faz apenas a apresentação do candidato”, diz Ricardo Guedes, diretor do Instituto Sensus. Para ele, a antiga fórmula de despender o tempo de tevê com a biografia dos candidatos não cola mais. Carlos Augusto Manhanelli, presidente da Associação Brasileira de Consultores Políticos, endossa: “Todos já sabem quem são os postulantes ao Planalto. O momento agora é de apresentar propostas. Serra está mostrando que é competente numa linguagem acessível.” Além disso, segundo Manhanelli, os ataques contra Ciro surtiram efeito. “Depois de vê-lo batendo boca em entrevistas na tevê e no rádio, o eleitor pensou: ‘Será que é o Collor de novo?’”

Nove entre dez analistas têm o mesmo diagnóstico. Ciro caiu pelas “mentiras”, pelo “destempero” e pela “agressividade”, estigmas que a campanha de Serra tenta, e está conseguindo, colar no candidato do PPS. “O inimigo do Ciro é o próprio Ciro”, ironiza o deputado José Aníbal, presidente do PSDB. A má fama do ex-governador do Ceará explodiu quando a tevê o mostrou abandonando uma caminhada em Curitiba. Irritado com a aglomeração, ele deu meia-volta, pegou um táxi e voou para o aeroporto, deixando sozinho e perplexo o aliado e candidato a governador, Álvaro Dias (PDT). O programa de Serra vai continuar falando exaustivamente em geração de empregos e exibindo personalidades do mundo artístico. As novidades são a novelista Glória Perez, o comediante Paulo Silvino e o pentacampeão Ronaldo Fenômeno. Fora da telinha, outros representantes da classe artística também deram seu apoio. No domingo 25, o ator Raul Cortez abriu sua casa em São Paulo para receber Serra e dezenas de artistas, entre eles Regina Duarte e sua filha, Gabriela Duarte. Os globais, porém, são proibidos por contrato de aparecer no horário gratuito.

Tudo bem para o tucanato, já que a principal estratégia é mesmo seguir cutucando os nervos de Ciro. As inserções durante a programação, as mais eficazes no horário gratuito, continuarão a bombardear o pavio curto do adversário, utilizando, entre outras, aquela em que Ciro chama um eleitor baiano de “burro” durante uma entrevista numa rádio. O autor da pergunta, Gerson, acabou gravando um depoimento para o horário tucano, que deverá ir ao ar nos próximos dias, no qual reconhece: “Eu era burro mesmo. Ia votar no Ciro. Agora não voto mais.” Segundo a pesquisa CNT/Sensus, 44% dos eleitores já viram o horário gratuito em parte ou inteiro. O dado é significativo porque, em eleições anteriores, esse índice não passava de 30% na primeira semana de exibição. Por isso mesmo, as gravações são mais que prioridade na agenda de Serra. Na última semana, ele não ficou sequer 24 horas seguidas fora de São Paulo, onde é produzido o programa. Chegou a desmarcar um comício em Tupã, no interior paulista, para se dedicar ao palanque eletrônico. Tudo isso em meio a muita euforia, acarajé e uma passagem inédita e animada pelo bar ao lado da produtora comandada por Nizan e Biondi. “Quando a gente ganhar, o senhor vai no nosso churrasco”, disse o candidato, sorridente como nunca, a um vizinho. No Planalto, o clima é o mesmo. Após a divulgação das pesquisas Ibope e Vox Populi, a fisionomia do presidente Fernando Henrique Cardoso também mudou: “O Serra deslanchou mesmo. O crescimento deu o fôlego que precisávamos. Temos que continuar na mesma linha, expor o Ciro e ir para o segundo turno”, disse FHC a um interlocutor. A decolagem também congelou o vírus da traição. “Não vai haver debandada. A infidelidade vai cair a zero”, aposta Jutahy Magalhães. “Quem estava na espreita, vai pular do muro e apoiar Serra”, completa o presidente do PMDB, Michel Temer (SP), entusiasmado. Em todas as sondagens eleitorais fica claro que Serra rouba os votos do candidato da Frente Trabalhista na maioria dos segmentos sociais. “Depois do debate da Bandeirantes, parte dos escolarizados desistiu de votar em Ciro. Isso se espalhou e chegou às outras camadas da população, o que é normal”, analisa Rubens Figueiredo, presidente do Centro de Pesquisas, Análises e Comunicação. Ciro só cresceu mesmo na categoria negativa – a rejeição, embora ela ainda seja a menor entre todos os candidatos.

 

Fogo cruzado – Os tucanos e aliados comemoram a decolagem, mas sabem que não voam em céu de brigadeiro. É certo que Ciro vai mirar as armas para o ninho de Serra e puxar o gatilho. “Ele está num mato sem cachorro: se responde, parece destemperado. Se não revida, consente e parece covarde”, avalia Figueiredo. No meio do fogo cruzado, com seu candidato arremetendo, a equipe de marketing da Frente Trabalhista só fez meter os pés pelas mãos até a última semana. Exatamente no mesmo dia em que a queda de Ciro se confirmou, motivada pelos tiros de Serra, o candidato surgiu na telinha prometendo não contra-atacar o adversário. “Isso não se faz. Agora ele ficou refém das próprias palavras”, diz um assessor. A idéia de levantar a bandeira branca teria partido do próprio Ciro. “Será que não tinha ninguém para dizer a ele que isso seria uma besteira?”, diz um outro colaborador indignado. Alguns pedem a cabeça do marqueteiro Einhart Jácome da Paz, cunhado de Ciro Gomes e comandante da estratégia. Egídio Serpa, porta-voz do candidato, é taxativo: “Não há força neste mundo que tire o Einhart. Ele é competente e já mostrou isso.”

A brigalhada se espalhou entre outros parceiros vindos da direita. Jorge Bornhausen, presidente do PFL, fez críticas pesadas à condução da campanha, e o ex-senador Antônio Carlos Magalhães, fiel ao estilo mandão, tentou impor sua favorita da publicidade, a baiana Propeg, no comando dos programas de tevê, para revidar as agressões. Foi barrado pelo próprio Tasso Jereissati (PSDB), que não se dá com o dono da Propeg, Fernando Barros. A avaliação do PFL e de alguns colaboradores próximos de Ciro é que a queda se deu também porque, nas últimas semanas, o candidato mudou o discurso em relação ao governo. “Ele optou pela tática de acalmar o mercado e até chamou FHC de magistrado. Enganou as pessoas ao moderar o discurso”, reclama um assessor. ACM ecoa: “De uma hora para outra ele ficou muito bonzinho. Ciro tem que voltar a mostrar que é oposição ao governo e que Serra é ‘laranja’ de FHC.” As declarações do cacique baiano causaram mais confusão. O presidente do PPS, Roberto Freire, não admite que ele tome conta do terreiro. “Se for uma campanha como ACM quer, estou fora”, confidenciou a um amigo. Freire e Bornhausen concordam num ponto: não querem petardos no programa. Já o PTB e o líder do PPS, João Hermann, pedem sangue. “Vamos contar a vida do Serra e vocês vão ver o santinho que ele é. Se ele quer guerra, terá”, ameaça o deputado Roberto Jefferson (PTB-AL).

A estrela Pillar – A reviravolta parece ter começado. Na quinta-feira 29, a propaganda de Ciro colocou no ar críticas à gestão de Serra na Saúde e apresentou seu grande trunfo: Patricia Pillar. A atriz e mulher de Ciro Gomes, responsável por 20% das suas intenções de voto, ressurgiu na tevê com o discurso que já tinha funcionado antes: “Eles não querem que você conheça o verdadeiro Ciro. Porque quanto mais você conhecer o Ciro, mais vai gostar dele.” A novidade agora é a retórica inaugurada para rebater os ataques dos tucanos na boca de Patricia. “Você alguma vez já disse que tá morto de cansaço? Ou que tomou um chá de cadeira? Com certeza, você não está morto nem moeu uma cadeira para fazer um chá. Pois é. O Ciro é como eu e você. Ele fala o que pensa e às vezes usa uma força de expressão.” Logo depois, ela fechou com chave de ouro: “Acompanhando a história do Ciro e conhecendo o Ciro eu me apaixonei por ele. Estão tentando convencer você de que o Ciro não diz a verdade e é pavio curto. Eu convivo com ele e posso dizer: o Ciro é honesto, amigo, competente e uma pessoa solidária.”

A tropa de choque de Ciro, devota do binômio bateu-levou criado na era Collor, pretende levar para a tevê as ligações de Serra com Ricardo Sérgio Oliveira, ex-diretor do Banco do Brasil. Além disso, o PPS paulista levantou cinco contratos de financiamentos do BNDES para laboratórios de genéricos e pretende usar este material no horário gratuito. O presidente do BNDES, Francisco Gros, carimbado como traidor no ninho tucano, é tido como simpático à candidatura da Frente. Na rua, Ciro vem atacando sem tréguas. Disse que Serra “mente e faz propostas mirabolantes para o País”. Advertiu que conhece “graves questões” mal explicadas: “Eu tenho Ricardo Sérgio, Bierrenbach, eu tenho quilhões. Conheço o Serra de mil anos.” Flávio Bierrenbach é ministro do Superior Tribunal Militar e, na campanha de prefeito em 1988, usou a tevê para acusar Serra de “usar o poder de forma cruel, corrupta e prepotente”. Procurado por ISTOÉ, Bierrenbach disse que a “única possibilidade de convivência civilizada que eu tenho com José Serra é o silêncio. Nunca falei com Ciro sobre este assunto. Há meses não conversamos”. A amigos, entretanto, insinuou que pode quebrar a mudez num segundo turno entre Lula e seu desafeto.

Mas, por enquanto, Lula segue tranquilo. Tudo o que o petista quer é ser esquecido nos próximos 40 dias. Por seus dois adversários, Ciro e Serra, é claro. O sonho dele é chegar no dia 6 de outubro sem ferimentos do intenso tiroteio entre os dois rivais. Não foi à toa que ele resumiu seu desejo com a frase “Lulinha quer paz e amor”. A queda de Ciro foi recebida com alívio no PT: provou que o candidato da Frente não era tão forte. Mas, ao mesmo tempo, boa parte do comando da campanha petista passou a se preocupar com a possibilidade de ver Serra ultrapassar Ciro. A avaliação é de que seria melhor enfrentar o candidato do PPS porque assim a elite se dividiria. Embora não vá atacar para manter-se ileso, Lula ironizou, após encontro com mais de 300 intelectuais, artistas e cientistas no Rio de Janeiro, na quinta-feira 29: “É normal que eles (Ciro e Serra), que estavam juntos no mesmo partido, que ganharam as eleições de 1994, agora se estranhem e consigam ver defeitos que eu ainda não conheço.”

O anúncio oficial da adesão, na terça-feira 27, antecipado com exclusividade por ISTOÉ, do senador José Sarney (PMDB-AP) ao barco de Lula ainda no primeiro turno combinou com a tática de adiantar uma estratégia que seria deflagrada no segundo turno. O ex-presidente é um trunfo importante para Lula construir uma imagem de oposição responsável. “Ao contrário do que dizem por aí, Lula é fator de estabilidade, e não de instabilidade”, disse Sarney, ao receber o petista na sua casa em Brasília. Quando quer, o próprio Sarney se encarrega de vazar este tipo de encontro para marcar posição de seu clã. Além dos salamaleques mútuos, sepultaram os xingamentos pretéritos, entre os quais um em que Lula chamava Sarney de “grileiro” de terras. Mas o encontro tem uma simbologia política. O apoio de Sarney, que não perdoa o envolvimento de Serra na operação que ceifou as pretensões presidenciais de Roseana, evidencia que a família está convencida de que o segundo turno será disputado entre Lula e Serra. O líder do PMDB, Geddel Vieira Lima, ficou furibundo. “Michel, se você não propuser a expulsão de Sarney do partido, eu vou pedir.” O presidente do PMDB, Michel Temer, sabe que há outros problemas iguais e fez ouvido de mercador. Já Garotinho, o espalha-brasa da eleição, não perdoou: “Ou o Sarney devolveu as terras, ou o Lula passou a conviver com os grileiros.”

Garotinho critica, mas ainda pode ajudar o candidato petista. Tudo depende do Rio de Janeiro, onde Rosinha, sua mulher, arrisca ganhar a eleição para o governo ainda no primeiro turno. O PT, discretamente, torce para que sua candidata, a governadora Benedita da Silva, continue patinando no terceiro lugar. A definição imediata da disputa no Rio pode liberar, ainda em setembro, o apoio de Garotinho a Lula, idéia que o candidato do PSB nega publicamente, mas trabalha por baixo dos panos. Na quarta-feira 28, Garotinho autorizou um de seus suportes financeiros, um esperto empresário que aduba a campanha de Rosinha e oxigena a empreitada de Lula, a procurar uma estrela afiada do QG petista para abrir negociações. Garotinho, mesmo com pouco dinheiro, disfarça mantendo a agenda de comícios e viagens. Com Rosinha eleita, sem ataques do PT, Garotinho ficaria liberado para negociar, da melhor maneira possível, o seu espólio eleitoral: cerca de 11% do eleitorado.