05/09/2007 - 10:00
Um livro que chega às livrarias americanas na terça-feira 4 irá mudar radicalmente a imagem que temos de Madre Teresa de Calcutá, a benfeitora dos pobres da Índia beatificada pela Igreja Católica – o primeiro passo para a santificação. Dez anos após sua morte, cartas e bilhetes escritos ao longo de 66 anos para seus superiores e confessores foram reunidos em Madre Teresa: Venha Ser a Minha Luz (Doubleday). A obra revela uma missionária com a alma atormentada, cheia de dúvidas em relação à sua fé e até sobre a existência de Deus. “Tantas questões não respondidas vivem em mim, temo revelá-las por causa da blasfêmia. Se houver Deus, por favor, perdoe-me”, escreveu Madre Teresa.
Sua vida espiritual paralela é um contraponto ao seu legado público. Madre Teresa notabilizou-se por sua luta incansável pelos miseráveis. Morreu em Calcutá, em 5 de setembro de 1997, aos 87 anos, e recebeu um funeral digno de chefe de Estado. O reconhecimento mundial de seu trabalho veio com o Prêmio Nobel da Paz, em 1979. Ao recebê-lo, dias antes do Natal, Madre Teresa disse que deveríamos lembrar que “Cristo está nos nossos corações, Cristo está nos pobres que encontramos, Cristo está no sorriso que damos e no sorriso que recebemos”. Três meses antes, porém, numa carta endereçada ao padre Michael van der Peet, seu conselheiro espiritual, o tom é outro. “Jesus tem um amor muito especial por você. (Mas) por mim o silêncio e o vazio são tão grandes que eu olho e não vejo, escuto mas não ouço.” É esta dualidade que Venha Ser a Minha Luz desnuda.
A obra é editada por Brian Kolodiejchuk, da congregação Missionárias da Caridade de Madre Teresa, ordem fundada por ela. Ele é um dos responsáveis pelo processo de santificação, do qual fazem parte as cartas. “O livro dará uma nova dimensão à maneira que as pessoas a vêem”, disse ele à revista TIME. Madre Teresa foi beatificada em 2003 por João Paulo II, em tempo recorde, depois que um milagre foi atribuído a ela. É necessário outro milagre para a canonização.
Acredita-se que o conteúdo dos textos não deve atrapalhar a campanha de santificação. “Eu acho que irá ajudar”, diz dom Hugo Cavalcante, monge beneditino, assessor para assuntos de direito canônico da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “O questionamento é o momento de humanidade de Madre Teresa. Mas Deus a colocou como instrumento para minorar o sofrimento dos miseráveis e ela seguiu sua missão. Isso é o divino.”
Muitos santos na história da Igreja Católica eram perturbados por dúvidas em relação a sua fé. A “noite escura” de São João da Cruz é seu momento de incerteza. São Tomé não acreditou que Jesus tinha ressuscitado e o próprio Cristo teve sua hora de fraqueza: “Pai, por que me abandonaste?”, perguntou a Deus na cruz. “Quem tem fé tem dúvida”, resume Jorge Cláudio Ribeiro, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Fé muitos dos quais nunca publicados antes, ela fala de “solidão”, “escuridão” e “tortura”. Compara a experiência ao inferno e chega a pôr em dúvida a existência do paraíso e de Deus. “Se não houver Deus, não pode haver alma. Se não houver alma, então, Jesus, Você também não é real”, escreveu ela em 1959.
“O que causa surpresa é que ela também se humilha, se desqualifica por ter dúvida e isso, na realidade, também não qualifica o próprio Deus”, diz o professor Lisias Nogueira Negrão, sociólogo e estudioso da religião da Universidade de São Paulo (USP). Às vezes, Madre Teresa tinha dificuldade até de rezar: “Digo palavras de orações comunitárias – e faço de tudo para tirar de cada palavra a doçura que ela tem de transmitir, mas minha oração de união já não existe. Não rezo mais.” Ela definia seu sorriso como uma máscara, um manto que tudo cobre.
Madre Teresa nasceu Agnes Gonxha Bojaxhiu em Skopje, na Macedônia, em 1910. Partiu para a Índia em 1929, onde fez noviciado no convento das Irmãs Loreto (uma comunidade baseada na Irlanda voltada para a educação) e tornou-se professora. Sua vida deu uma guinada em 10 de setembro de 1946, enquanto percorria os 645 quilômetros de trem de Calcutá para Darjeeling, perto do Himalaia. A viagem era determinação de seus superiores, pois a irmã estava doente e precisava descansar. No caminho, Jesus teria falado com ela e a conclamado a abandonar as salas de aula para trabalhar nas favelas, lidando diretamente com “os mais pobres dos pobres” – os doentes, os moribundos, os mendigos e as crianças de rua. “Venha, venha. Me leve até os recônditos aonde se encontram os desvalidos”, Jesus teria dito a Madre Teresa. “Venha ser a Minha luz.” O objetivo, segundo Kolodiejchuk, era tanto material quanto espiritual: ela os ajudaria a viver a vida com dignidade, eles encontrariam o amor infinito de Deus e, em troca, O amariam e O serviriam.
Ela conseguiu autorização para criar sua congregação – as Missionárias da Caridade – em 1948. Na primeira metade do ano, ela fez um curso básico de cuidados médicos antes de começar seu trabalho nas ruas de Calcutá. “Minha alma, no momento, está feliz e alegre”, escreveu Madre Teresa. O livro traz sua descrição do primeiro dia de trabalho. Ela encontrou um idoso doente e à beira da morte abandonado na rua e lhe ofereceu água. A missionária comenta a estranheza que sentiu ao ver o quanto o pobre homem ficou agradecido.
Dois meses depois, logo após ela conseguir um local para abrigar a congregação, seu estado de espírito já era outro. “Que tortura esta solidão. Me pergunto, quanto tempo meu coração sofrerá assim?”, escreveu Madre Teresa. Em março de 1953, numa correspondência com o arcebispo de Calcutá Ferdinand Périer, ela disse: “Por favor, reze especialmente por mim para que não estrague a obra d’Ele e que Nosso Senhor possa se mostrar – pois há uma escuridão tão terrível dentro de mim, como se tudo estivesse morto. Tem sido assim mais ou menos desde que dei início à ‘obra’.” Embora o trabalho das Missionárias da Caridade progredisse, o martírio de Madre Teresa não diminuía. Até meados dos anos 80, ela usava o termo “minha escuridão” junto aos seus confessores e referia-se a Jesus como “o Ausente”. Em 1995, dois anos antes de sua morte, ela ainda falava sobre sua “aridez espiritual”.
Madre Teresa queria que seus manuscritos fossem destruídos, mas a Igreja decidiu preservá-los. “Quero que a obra seja apenas Dele. Se as cartas se tornarem públicas, as pessoas pensarão mais em mim – e menos em Jesus”, disse ela ao reverendo Lawrence Picachy. Como o desejo da missionária não foi atendido, a compilação dessas cartas e bilhetes poderá ser uma valiosa relíquia da futura Santa Teresa de Calcutá.