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Um livro que chega às livrarias americanas na terça-feira 4 irá mudar radicalmente a imagem que temos de Madre Teresa de Calcutá, a benfeitora dos pobres da Índia beatificada pela Igreja Católica – o primeiro passo para a santificação. Dez anos após sua morte, cartas e bilhetes escritos ao longo de 66 anos para seus superiores e confessores foram reunidos em Madre Teresa: Venha Ser a Minha Luz (Doubleday). A obra revela uma missionária com a alma atormentada, cheia de dúvidas em relação à sua fé e até sobre a existência de Deus. “Tantas questões não respondidas vivem em mim, temo revelá-las por causa da blasfêmia. Se houver Deus, por favor, perdoe-me”, escreveu Madre Teresa.

Sua vida espiritual paralela é um contraponto ao seu legado público. Madre Teresa notabilizou-se por sua luta incansável pelos miseráveis. Morreu em Calcutá, em 5 de setembro de 1997, aos 87 anos, e recebeu um funeral digno de chefe de Estado. O reconhecimento mundial de seu trabalho veio com o Prêmio Nobel da Paz, em 1979. Ao recebê-lo, dias antes do Natal, Madre Teresa disse que deveríamos lembrar que “Cristo está nos nossos corações, Cristo está nos pobres que encontramos, Cristo está no sorriso que damos e no sorriso que recebemos”. Três meses antes, porém, numa carta endereçada ao padre Michael van der Peet, seu conselheiro espiritual, o tom é outro. “Jesus tem um amor muito especial por você. (Mas) por mim o silêncio e o vazio são tão grandes que eu olho e não vejo, escuto mas não ouço.” É esta dualidade que Venha Ser a Minha Luz desnuda.

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A obra é editada por Brian Kolodiejchuk, da congregação Missionárias da Caridade de Madre Teresa, ordem fundada por ela. Ele é um dos responsáveis pelo processo de santificação, do qual fazem parte as cartas. “O livro dará uma nova dimensão à maneira que as pessoas a vêem”, disse ele à revista TIME. Madre Teresa foi beatificada em 2003 por João Paulo II, em tempo recorde, depois que um milagre foi atribuído a ela. É necessário outro milagre para a canonização.

Acredita-se que o conteúdo dos textos não deve atrapalhar a campanha de santificação. “Eu acho que irá ajudar”, diz dom Hugo Cavalcante, monge beneditino, assessor para assuntos de direito canônico da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “O questionamento é o momento de humanidade de Madre Teresa. Mas Deus a colocou como instrumento para minorar o sofrimento dos miseráveis e ela seguiu sua missão. Isso é o divino.”

Muitos santos na história da Igreja Católica eram perturbados por dúvidas em relação a sua fé. A “noite escura” de São João da Cruz é seu momento de incerteza. São Tomé não acreditou que Jesus tinha ressuscitado e o próprio Cristo teve sua hora de fraqueza: “Pai, por que me abandonaste?”, perguntou a Deus na cruz. “Quem tem fé tem dúvida”, resume Jorge Cláudio Ribeiro, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Fé muitos dos quais nunca publicados antes, ela fala de “solidão”, “escuridão” e “tortura”. Compara a experiência ao inferno e chega a pôr em dúvida a existência do paraíso e de Deus. “Se não houver Deus, não pode haver alma. Se não houver alma, então, Jesus, Você também não é real”, escreveu ela em 1959.

“O que causa surpresa é que ela também se humilha, se desqualifica por ter dúvida e isso, na realidade, também não qualifica o próprio Deus”, diz o professor Lisias Nogueira Negrão, sociólogo e estudioso da religião da Universidade de São Paulo (USP). Às vezes, Madre Teresa tinha dificuldade até de rezar: “Digo palavras de orações comunitárias – e faço de tudo para tirar de cada palavra a doçura que ela tem de transmitir, mas minha oração de união já não existe. Não rezo mais.” Ela definia seu sorriso como uma máscara, um manto que tudo cobre.

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Madre Teresa nasceu Agnes Gonxha Bojaxhiu em Skopje, na Macedônia, em 1910. Partiu para a Índia em 1929, onde fez noviciado no convento das Irmãs Loreto (uma comunidade baseada na Irlanda voltada para a educação) e tornou-se professora. Sua vida deu uma guinada em 10 de setembro de 1946, enquanto percorria os 645 quilômetros de trem de Calcutá para Darjeeling, perto do Himalaia. A viagem era determinação de seus superiores, pois a irmã estava doente e precisava descansar. No caminho, Jesus teria falado com ela e a conclamado a abandonar as salas de aula para trabalhar nas favelas, lidando diretamente com “os mais pobres dos pobres” – os doentes, os moribundos, os mendigos e as crianças de rua. “Venha, venha. Me leve até os recônditos aonde se encontram os desvalidos”, Jesus teria dito a Madre Teresa. “Venha ser a Minha luz.” O objetivo, segundo Kolodiejchuk, era tanto material quanto espiritual: ela os ajudaria a viver a vida com dignidade, eles encontrariam o amor infinito de Deus e, em troca, O amariam e O serviriam.

Ela conseguiu autorização para criar sua congregação – as Missionárias da Caridade – em 1948. Na primeira metade do ano, ela fez um curso básico de cuidados médicos antes de começar seu trabalho nas ruas de Calcutá. “Minha alma, no momento, está feliz e alegre”, escreveu Madre Teresa. O livro traz sua descrição do primeiro dia de trabalho. Ela encontrou um idoso doente e à beira da morte abandonado na rua e lhe ofereceu água. A missionária comenta a estranheza que sentiu ao ver o quanto o pobre homem ficou agradecido.

Dois meses depois, logo após ela conseguir um local para abrigar a congregação, seu estado de espírito já era outro. “Que tortura esta solidão. Me pergunto, quanto tempo meu coração sofrerá assim?”, escreveu Madre Teresa. Em março de 1953, numa correspondência com o arcebispo de Calcutá Ferdinand Périer, ela disse: “Por favor, reze especialmente por mim para que não estrague a obra d’Ele e que Nosso Senhor possa se mostrar – pois há uma escuridão tão terrível dentro de mim, como se tudo estivesse morto. Tem sido assim mais ou menos desde que dei início à ‘obra’.” Embora o trabalho das Missionárias da Caridade progredisse, o martírio de Madre Teresa não diminuía. Até meados dos anos 80, ela usava o termo “minha escuridão” junto aos seus confessores e referia-se a Jesus como “o Ausente”. Em 1995, dois anos antes de sua morte, ela ainda falava sobre sua “aridez espiritual”.

Madre Teresa queria que seus manuscritos fossem destruídos, mas a Igreja decidiu preservá-los. “Quero que a obra seja apenas Dele. Se as cartas se tornarem públicas, as pessoas pensarão mais em mim – e menos em Jesus”, disse ela ao reverendo Lawrence Picachy. Como o desejo da missionária não foi atendido, a compilação dessas cartas e bilhetes poderá ser uma valiosa relíquia da futura Santa Teresa de Calcutá.