Por ter sido preso com maconha em 1976, até hoje sempre que Gilberto Gil requisita um visto para os Estados Unidos necessita de uma espécie de perdão renovado por parte do governo americano. Foi um dos motivos da sua chegada atrasada na Jamaica, via Miami, no final de 2001, onde gravou o álbum Kaya n’gan daya, aguardado projeto envolvendo regravações de músicas de Bob Marley. A pura diversão contida nas ótimas interpretações de Gil começa pelo título, um trocadilho com kaya, gíria jamaicana para maconha de boa qualidade e nome de uma das canções e disco mais populares do rei do reggae. Referências à parte, o disco é um primor. O show de lançamento do CD e do DVD já está acontecendo no Canecão carioca e deve chegar a São Paulo no final do mês, partindo em seguida para uma turnê mundial.

Das 16 faixas do álbum, apenas uma não pertence ao repertório de Marley. É a agitada Table tennis table, do próprio Gil, que se inspirou no tenista Gustavo Küerten. Para emoldurar as demais, num passo inédito o cantor e compositor baiano fugiu das chamadas releituras. Na festa de lançamento do projeto, realizada em São Paulo, na segunda-feira 13, Dia da Libertação dos escravos, ele deixou claro que Marley é um clássico. Não carece ser alterado. Mas Gil comemora, na visão dele, uma divertida coincidência entre Bob Marley e Luiz Gonzaga, que têm importância vital em seu trabalho. “Gonzaga foi o pai e Marley fala a mesma língua, embora em outro idioma”, interpreta ele. Na realidade, o que vê são só semelhanças entre rastamen – de rastafári, a religião – e cangaceiros, nas roupas, nos cabelos e na estrela de Davi. Gil queria, inclusive, tocar com músicos jamaicanos. Mas os ensaios sob a supervisão do diretor artístico e produtor Tom Capone deixaram claro que o caminho seria outro. Mesmo assim, o baiano fez questão de conseguir uma guitarra Les Paul Special, cor vinho, “idêntica à de Bob”, com a qual ele tira a batida one drop, característica do reggae. Assim, Arthur Maia (contrabaixo), Jorge Gomes (bateria), Sérgio Chiavazzoli (guitarra e banjo), Claudio Andrade (teclados), Gustavo de Dalva e Leonardo Reis (percussão)
e Cícero Dias (sanfona) se revelaram disciplinados jamaicanos na
maioria das faixas.

As participações especiais são poucas, mas ilustres. O skank Samuel Rosa e a dupla baixo-bateria Robbie Shakespeare & Sly Dunbar tocam em Could you be loved; Os Paralamas do Sucesso, com Herbert Vianna solando lindamente, aparecem em Não chore mais (no woman, no cry) e Them belly full (but we hungry); o grupo I-Three, com as vocalistas originais de Marley, lideradas pela viúva Rita Marley, surge em Three little birds e Lick samba – samba, aliás, não é o ritmo brasileiro, mas o linguajar caipira dos jamaicanos. É assim que, com Kaya n’gan daya, Gilberto Gil fez um disco mostrando a clara diferença entre o reggae disseminado pelo mundo
e a música riquíssima de Bob Marley. Ou seja, a distinção entre
o repetitivo e o hipnótico.