O governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, diz que chegou o momento de o Brasil declarar guerra total ao crime organizado

Ao entrar pela primeira vez em seu gabinete, no histórico Palácio Anchieta, colégio dos jesuítas até 1769, o economista Paulo Hartung (PSB) levou um susto: não tinha nem computador na sala do governador. Mas isso não era nada perto do que estava por vir. Na campanha, Hartung já sabia que iria se deparar com um monstro que há anos infiltra seus tentáculos em todos os poderes do Estado, contaminando Executivo, Legislativo e Judiciário: o crime organizado. Leu todos os livros que lhe caíam nas mãos sobre o assunto. Mas foi no seu 83º dia de governo que um verdadeiro míssel Tomahawk lhe caiu sobre a cabeça: a execução do juiz Alexandre Martins de Castro Filho na segunda-feira 24. “ Foi um baque. Mas o crime organizado não vai nos intimidar”, afirma. Há anos o Estado é terreno fértil para o trabalho dos pistoleiros, para quem uma vida pode valer R$ 300. As instituições capixabas foram sendo infiltradas durante os últimos 20 anos por “empresários do crime”, ligados às mais variadas atividades ilícitas, como o jogo do bicho. São criminosos milionários, que não saíram das favelas ou prisões como acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo, Estados que enfrentam o poder de fogo dos líderes de grupos como Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital. Hartung, 45 anos, casado e pai de dois filhos, tem uma longa carreira na política, iniciada há 20 anos quando foi eleito deputado estadual pelo PMDB. Mas nunca teve que encarar uma missão tão espinhosa e perigosa, que hoje o obriga a andar cercado por seguranças. Ex-deputado federal, ex-prefeito de Vitória e ex-senador, Hartung migrou do PSDB para o PPS em 1999, devido a disputas internas com o seu antecessor, José Ignácio Ferreira. Hoje no PSB, ele diz que são especulações as notícias de que estaria prestes a deixar o partido, no qual ingressou em 2001, para entrar no barco do PT.

ISTOÉ – O sr. acredita que o presidente Lula vai conseguir vencer a guerra que declarou ao crime organizado?
Paulo Hartung

O presidente Lula está consciente de que o desafio que tivemos há oito anos com a questão da inflação é hoje o da segurança pública. Ele sabe que chegou o momento de enfrentar o problema. O País tem uma história de descaso com a segurança pública. Vivemos nos últimos anos um jogo de empurra-empurra de um nível de governo para outro, com as pessoas querendo achar culpados. Bota a culpa em tal instituição que falhou, em tal autoridade que cometeu erros. Há uma baita fogueira de vaidade entre as instituições. Chegamos a um ponto em que estamos começando a reverter a situação.

ISTOÉ – O sr. assumiu prometendo combater o crime organizado. Com três meses no cargo o sr. recebe esse baque, que foi o assassinato do juiz Alexandre Martins. Foi um aviso dos criminosos?
Paulo Hartung

Foi um baque. Nós perdemos um quadro da melhor qualidade, pelo conhecimento jurídico, pela firmeza, pela disposição de enfrentar essa situação. Mas não podemos fazer o jogo do crime organizado, não vamos abaixar a cabeça. A limpeza nas instituições vai continuar. O tiro vai sair pela culatra. O crime organizado perdeu muitas posições nas instituições do Estado. Com esse assassinato bárbaro, os inimigos quiseram intimidar o Judiciário, o Ministério Público, o Executivo, a Ordem dos Advogados do Brasil, as igrejas, os movimentos em defesa dos direitos humanos, que estão unidos aqui no Estado na guerra contra a criminalidade. Não vão nos intimidar.

ISTOÉ – Então a execução do juiz não foi um sinal de retrocesso na guerra?
Paulo Hartung

 Não. Só será retrocesso se a gente recuar e nós não vamos recuar. No Espírito Santo estamos encurralando os criminosos, deslocando-os para o submundo. Mas não podemos subestimar as coisas. O crime organizado tem uma estrutura de poder e muito dinheiro. Eles têm armamento de última geração. Eles gravam o poder público. Imagina! Eles gravam e ameaçam as autoridades! Estamos fechando seus canais de financiamento que passam pela máquina pública.

ISTOÉ – No ano passado, a sociedade civil capixaba pediu a intervenção federal, mas isso não ocorreu. Essa seria novamente a saída?
Paulo Hartung

Não. Como não houve a intervenção, o governo federal criou em meados do ano passado uma missão especial (uma força-tarefa formada pela Polícia Federal, Ministério Público Federal, Polícia Rodoviária Federal, Receita Federal), que trabalhou junto com as forças locais e produziu resultados, prisões de pessoas importantes (como o ex-presidente da Assembléia Legislativa José Carlos Gratz, o empresário Carlos Guilherme Lima e o coronel da reserva da PM Walter Gomes Ferreira, apontado como mandante da execução do juiz Alexandre Martins). Desde a criação dessa missão, começamos a avançar no combate aos grupos criminosos. Com a minha posse, criamos o Gabinete Integrado de Segurança Pública – proposto pelo atual secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares –, que é inédito e pode servir de modelo para o Brasil. Pode ser um conceito meio óbvio, mas se o crime é organizado, o Estado e a sociedade precisam se organizar. Vivemos um momento decisivo. Ou vai ou racha. O poder público, no âmbito municipal, estadual e federal, não pode vacilar.

ISTOÉ – Até onde vão os tentáculos do crime organizado na estrutura estatal do Espírito Santo?
Paulo Hartung

O Espírito Santo foi transformado nesses últimos anos num negócio privado. Então, primeiro precisamos varrer as práticas de corrupção que tomaram conta da máquina pública. Temos que enfrentar a existência de autoridades envolvidas com ações criminosas, protegendo e promovendo o crime organizado. Escolhi uma pessoa de fora do Estado para ser o secretário de Segurança, Rodney Rocha Miranda (delegado licenciado da PF do Distrito Federal). Foi uma mão na luva. Eu não queria arranjar mais disputas. Ele já estava integrado com a turma da missão especial. Um dos problemas da área de Segurança Pública é que há muita competição entre as instituições e pouca cooperação. Quando Rodney assumiu, descobriu que a secretaria não tinha mais estrutura. Justamente o ponto-chave do combate ao crime organizado foi desmontado. Ficou só uma casquinha. Nem debatemos isso na campanha eleitoral porque eu não sabia. As características do crime organizado no nosso Estado são diferentes das do Rio ou São Paulo. Não é um problema igual em todos os lugares. Mas como os criminosos não se limitam aos territórios, é preciso um movimento nacional para combatê-los, coordenado evidentemente pela liderança maior, que é o governo federal. O dinheiro que é roubado num canto do Brasil sai pelo Paraná, entra pelo Paraguai e vai para outros países. Os governadores devem conversar, permitir a troca de informações entre as nossas polícias.

ISTOÉ – Mas essa fogueira de vaidades entre as instituições que devem combater o crime organizado já foi apagada no Espírito Santo?
Paulo Hartung

São muitos anos de competição entre as instituições, de corda esticada, polícia civil contra militar, polícias locais contra polícia federal. A gente tem que reconhecer, ter humildade, saber que vamos trabalhar muito ainda para apagar essa fogueira. Nós não viramos a página. Estamos tirando o crime organizado do poder no Espírito Santo, enfraquecendo-o. Temos obstáculos gigantescos pela frente. Esse problema só terá solução se todos nós, governos e sociedade, nos unirmos porque o outro lado tem muito poder concentrado, muito dinheiro. Como é que vamos enfrentar uma coisa desse tamanho? Você prende um chefe de quadrilha e ele dá ordens de dentro do presídio para fora. Como você vai superar isso com jogo de empurra? Não vai. Vai resolver com humildade, com coesão, com determinação, com persistência, com a visão de que precisamos de inteligência policial.

ISTOÉ – O governador do Acre, Jorge Viana (PT), chegou a um ponto em que ele mesmo se viu ameaçado pelos criminosos. O sr. está assustado?
Paulo Hartung

Depois da eleição, procurei o Jorge para conversar e aprender um pouco porque ele já tinha vivido durante sua primeira gestão, uma experiência muito difícil. Nós não precisamos ter uma visão de que não temos receio das coisas. A sociedade não está pedindo que o governador seja um super-homem. A sociedade quer que as autoridades não sejam omissas e é isso que estamos fazendo. Eu nunca andei com segurança na vida e agora estou andando porque sei o que eu e o meu governo estamos enfrentando. É uma guerra duríssima. Eu sei o que está do outro lado. Então, essa prevenção não é só em respeito à minha integridade física e da minha família. É a necessidade de manter esse governo de pé com força e articulado para encarar essa luta.

ISTOÉ – Qual a sua avaliação sobre o desempenho do governo FHC no combate ao crime organizado?
Paulo Hartung

O governo FHC perdeu muito tempo, não deu importância
ao tema. Fez um plano nacional de segurança pública que acabou
numa gaveta de Brasília. Na contabilidade do governo FHC há muita
coisa positiva. Mas o capítulo da segurança pública é absolutamente negativo. O governo anterior demorou a entrar na questão, mas
começou a discutir. Temos que fazer justiça. O próprio FHC
reconheceu que entrou tarde na questão.

ISTOÉ – O combate ao crime organizado é o principal desafio de seu governo?
Paulo Hartung

Temos vários. O desafio administrativo, por exemplo.
A máquina do Estado foi completamente destruída nos últimos
anos. A única coisa que restou da máquina foi aquilo que era para chantagear, para fazer negócios privados. Só restou a parte da máquina ligada à ação criminosa, à corrupção, à proteção da bandidagem.
O primeiro desafio é reconstruir o Estado com os conceitos
republicanos, separando o público do privado.

ISTOÉ – Então o sr. encontrou uma terra arrasada?
Paulo Hartung

Quer ver um exemplo? O computador que você vê na minha mesa eu trouxe para cá. A sala do governador não tinha um computador. É inacreditável! É isso que nós encontramos. Além do desafio administrativo, há também o financeiro. O Estado tem uma dívida mensal com o governo federal de R$ 25 milhões. Aí deve-se somar a dívida com o Banco Mundial (Bird), com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), além das dívidas com outras instituições federais. Gastamos perto de R$ 300 milhões por ano com essas dívidas. Se isso não bastasse, temos uma dívida de curto prazo, de restos a pagar, em torno de R$ 1,3 bilhão. Se eu pudesse fazer uma mágica e parar tudo, eu pagaria essa dívida de curto prazo usando a arrecadação de oito meses. Dentro disso, temos uma coisa mais grave, que é uma dívida de R$ 300 milhões com o funcionalismo público. Isso em um Estado que eu encontrei arrecadando algo em torno de R$ 165 milhões por mês.

ISTOÉ – Depois de encontrar um cenário como esse, qual é a marca que o sr. gostaria de imprimir a seu governo?
Paulo Hartung

Vai ser um governo de reconstrução. É preciso reconstruir
a máquina, reconstruir o equilíbrio financeiro, reconstruir o amor do capixaba pelas instituições públicas. Os capixabas nunca deixaram
de amar este Estado, lindo e cheio de potencialidades. Apesar de
toda a desorganização da máquina pública, o maior crescimento industrial no País no ano passado foi o do Espírito Santo. Nos primeiros meses deste ano, novamente o maior crescimento industrial foi do nosso Estado. O que atrapalhou foi a desorganização da máquina pública, mergulhada na corrupção. O desafio do nosso governo é brutal. Mas
eu sou otimista. Vai dar muito trabalho, muita dor de cabeça. Você não imagina o que eu tenho passado como governador do Estado nesses últimos dias. Toda a sorte de dificuldades.

ISTOÉ – O sr. tem encontrado apoio no presidente Lula. Tem ressalvas ao governo que está completando 100 dias?
Paulo Hartung

Ressalva nenhuma. Tenho apoio. É um governo no início, está tomando pé da realidade. Sinto que naquilo que está ao alcance do governo Lula há disposição de construir parcerias com o Espírito Santo. Eu tenho paciência, compreendo essa situação.


ISTOÉ – Mas, na questão social, o governo Lula está patinando, não?
Paulo Hartung

Início não é fácil para ninguém. Eu fiz uma campanha não gerando muita expectativa. Já sabia dos problemas no Estado. A campanha do presidente Lula criou muita esperança na população. É muito difícil administrar esse conjunto de expectativas. Eu estou apoiando o governo federal inclusive, na sua política econômica. O próprio presidente Lula disse que não se imaginava no governo aumentando as taxas de juros. Mas ele está correto porque, se o governo não for duro na política monetária, na política fiscal, perde o controle da situação e implode a economia do Brasil. Não adianta tentar caminho fácil nessa matéria. O objetivo é crescer, gerar emprego, gerar renda. Acho que a gente vai chegar no segundo semestre muito melhor.