O cardiologista Agnaldo Píspico, especialista em emergência, diz que o serviço no País pode ser melhor e salvar ainda mais vidas

Quem já assistiu aos seriados americanos, em que médicos se desdobram para salvar vidas, sente uma certa familiaridade com o trabalho do cardiologista paulista Agnaldo Píspico. Vira-e-mexe, ele chega de helicóptero para socorrer alguém na rodovia Bandeirantes (estrada que liga a capital ao interior paulista) ou nas ruas de Araras, cidade do interior de São Paulo. Apaixonado por atendimento de emergência, Píspico já trabalhou com os paramédicos – normalmente bombeiros – de Miami, nos Estados Unidos. Hoje, além de coordenar o atendimento na Bandeirantes, ele é diretor do Serviço de Atendimento Municipal de Urgência (Samu) de Araras. Seu trabalho vem se destacando tanto que é reconhecido por onde quer que passe na cidade. Píspico tem 35 anos e é casado. Mesmo sendo médica, a esposa não entende a gana do marido pelas emoções do socorro imediato. "Ela acha que eu arrisco a minha vida e me pergunta por que faço isso. Não tenho resposta, apenas gosto desse trabalho", conta. E põe gostar nisso. Píspico perdeu, por exemplo, jogos emocionantes de Copas do Mundo, momentos em que a ocorrência de infartos é alta. Também é comum ter que largar a família num restaurante e até se acidentar na escada de casa quando sai correndo, de madrugada, para ajudar alguém. Mas o doutor não desanima com os percalços e pretende ir cada vez mais longe. Haja fôlego. Píspico treinou telefonistas da central da rodovia Bandeirantes/Anhanguera a reconhecerem a descrição dos sintomas de infarto. Agora, promete que a cidade será a primeira no Estado a ter bombeiros atendendo emergências com necessidade de socorro especial para o coração. Ele ainda sonha em ensinar às crianças, na excola, as primeiras noções de massagem cardíaca. Foi de forma apaixonada que Píspico falou sobre medicina, emergência, Brasil e vida a ISTOÉ.

ISTOÉ – De onde surgiu seu interesse por emergência?
Agnaldo Píspico

Desde que a emergência pré-hospitalar começou a existir em São Paulo, na década de 80. O grande problema é que o Brasil nunca teve um serviço pré-hospitalar parecido com o que existe lá fora. Nossa legislação não permite que profissionais que não sejam médicos façam o atendimento. Nos Estados Unidos, por exemplo, os paramédicos são bombeiros que recebem treinamento especial. Isso torna a emergência um serviço especializado. Inclusive o bombeiro é muito bom para atender trauma. Mas, como eles no Brasil não podem realizar alguns procedimentos, o trabalho fica limitado. O bombeiro não pode entubar o paciente, não pode fazer nenhum procedimento ou realizar a desfibrilação cardíaca – que é aquele choque dado no peito. Somando isso com a falta de ambulâncias e recursos, o atendimento fica realmente muito prejudicado. Foi dessa deficiência na área de emergência que surgiu a minha vontade de mudar o quadro.

ISTOÉ – E como você começou a fazer isso?
Agnaldo Píspico

Moro numa cidade de 100 mil habitantes. Com a atual administração e apoio da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, consegui viabilizar um projeto que tinha elaborado para o Sistema de Atendimento Municipal de Urgência (Samu). Eu não poderia colocar bombeiros para fazer procedimentos invasivos porque é proibido por lei, mas poderia aproveitar o que tem no mercado para melhorar o funcionamento dos atendimentos de emergência na cidade. Por isso, para salvar o coração investimos no desfibrilador externo automático, que, colocado no peito, reconhece a arritmia e dispara choques na medida certa. Por enquanto, ele está sendo usado por médicos.

ISTOÉ – Por que esse desfibrilador é tão importante?
Agnaldo Píspico

A primeira causa de morte entre pessoas de 35 a 65 anos é o infarto. Nessa faixa, 30% das vítimas terão morte súbita. São aqueles casos em que a pessoa nunca sentiu nada, nunca teve sintomas e de repente cai sem consciência, sem pulso, sem respirar. A chance de ela viver é exclusivamente a chegada desse aparelho a tempo. Cada minuto de retardo significa 10% a menos de chance de sobrevivência. Ou seja, com dez minutos de espera, essa chance é praticamente zero. Por isso, a nossa luta é levar o aparelho o mais rápido possível à vítima. E não adianta nada ter um médico presente no local se não houver o aparelho por perto.

ISTOÉ – O desfibrilador pode salvar mais vidas do que os médicos em si?
Agnaldo Píspico

Sim. Hoje, a média de sobrevida no Brasil para os casos de parada cardíaca é de cerca de 2%. Se tivermos um desfibrilador por perto, esse número sobe para 30%. Nos Estados Unidos, em alguns aeroportos e cassinos que possuem o desfibrilador, esse índice chega a 50%.

ISTOÉ – É possível implantar um sistema como esse numa cidade grande como São Paulo?
Agnaldo Píspico

Sim. Não estamos falando de nada muito difícil. O resgate tem de usar o desfibrilador. Nós estamos com um projeto pronto em Araras e pretendemos ser a primeira cidade do Estado onde os bombeiros usam o aparelho. Tudo é questão de boa vontade. Estamos treinando esses profissionais e em breve eles já estarão atuando. No Rio de Janeiro, os bombeiros já utilizam o desfibrilador com sucesso.

ISTOÉ – Mas os bombeiros têm treinamento suficiente para usá-lo? Não é algo apenas para médicos especialistas?
Agnaldo Píspico

Definitivamente não. O aparelho foi desenvolvido para ser utilizado por leigos. Nos Estados Unidos, os policiais também recorrem ao desfibrilador. Qualquer um com seis horas de treinamento consegue manejá-lo. Ele é auto-explicativo. Tem um software em português que dá o passo a passo do que deve ser feito. O desfibrilador externo automático reconhece sozinho a arritmia e indica o choque adequado. Quem o utiliza precisa só colar um adesivo no paciente. O Conselho Regional de Medicina até fez um parecer favorável quanto ao uso do aparelho por bombeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem.

ISTOÉ – O sr. quer dizer que ter o desfibrilador é a principal mudança para melhorar o serviço de emergência?
Agnaldo Píspico

De jeito nenhum. Ter o desfibrilador é apenas um passo. Ensinar a população a chamar o resgate é fundamental. O brasileiro não tem esse costume. Outra coisa importante é ensinar os sintomas do infarto e explicar que se alguém tiver um ataque na sua frente não se deve tentar resolver o problema por conta própria, mas sim ligar para o socorro. Muita gente reconhece os sintomas e entra no carro para ir ao hospital. É um erro. Tem de chamar ajuda. As pessoas que tentam correr ao hospital têm, em média, 51% de chances de não chegar a tempo.

ISTOÉ – O trânsito de uma cidade grande não pode atrapalhar a chegada do resgate?
Agnaldo Píspico

Sim. É importante termos desfibriladores em locais de grande concentração, como shoppings e estádios de futebol, com pessoas treinadas. O correto para salvar o paciente com parada cardiorrespiratória é que o desfibrilador chegue em, no máximo, sete minutos. Isso é possível. Em Araras, estamos com uma média de quatro minutos. E não estamos falando de nenhum aparelho muito caro. Um desfibrilador sai por volta de US$ 5 mil. Barato para a medicina.

ISTOÉ – O sr. trabalhou durante algum tempo no Fire Rescue em Miami. Qual a diferença?
Agnaldo Píspico

Tudo. Um dos bombeiros me perguntou como era no Brasil quando alguém sente dor no peito, quem é que leva para o hospital. Quando disse que era a família, ele quase caiu para trás. Aí, me perguntou se os bombeiros fazem desfibrilação. Respondi que não. O comentário foi: "E como que as pessoas sobrevivem?" Nesse quadro, a chance realmente de a pessoa sobreviver fica bem reduzida.

ISTOÉ – E se os bombeiros começassem a atender mais ocorrências?
Agnaldo Píspico

Eles salvariam mais vidas. O bombeiro tem capacidade para isso. Quando a gente mostra para esses profissionais que a massagem cardíaca só salva 2% das pessoas, eles ficam desgostosos. É um choque ver que eles não estão fazendo quase nada. O Brasil tem 820 mortes súbitas por dia. É quase uma morte por minuto. E 85% delas são por causa de doenças cardíacas. Essas mortes poderiam ser evitadas se os bombeiros atendessem as emergências com um desfibrilador.

ISTOÉ – Como você avalia o serviço de emergência no Brasil?
Agnaldo Píspico

Falta equipar as ambulâncias para atendimento de pacientes clínicos (como os casos de males cardíacos e pressão alta). Falta dar mais autonomia ao bombeiro. Claro que há Estados onde as ambulâncias são mais bem equipadas e lugares onde ter um infarto no pronto-socorro pode ser fatal. O Rio de Janeiro, por exemplo, se sobressai. Lá, existe um médico presente na maioria das ocorrências de emergência e estão começando a usar o desfibrilador na ambulância de suporte básico. Mas nenhuma cidade tem um atendimento modelo. Para a American Heart Association, fazer um atendimento eficiente significa ter acesso a um socorro com desfibrilador com tempo inferior a cinco minutos. Isso não existe aqui. O atendimento de trauma é melhor que o clínico, até porque nessa área os bombeiros podem atuar.

ISTOÉ – Como é o seu trabalho no socorro aéreo na rodovia Bandeirantes?
Agnaldo Píspico

Temos na rodovia oito ambulâncias de resgate que chegam, em média, em cinco minutos ao local do acidente. Mostrei à equipe que não se morre só de acidentes. Afinal, temos um milhão de usuários por dia. Se a estatística fala que a maior causa de morte é o infarto, por que não termos um trabalho contra infarto na estrada? Em breve, começaremos a colocar em prática na rodovia o projeto Amigo do Peito, que ensinará os usuários a prevenir o ataque cardíaco. Vamos ensiná-los a reconhecer os sinais do infarto através de panfletos e o que ele deve fazer nessa hora. A lição é parar o veículo em um lugar seguro e chamar ajuda. Treinei as telefonistas da central de resgate da rodovia Bandeirantes a fazerem perguntas que ajudem a identificar o problema. Se as suspeitas forem confirmadas, será acionado o socorro que está equipado com o desfibrilador externo automático. Antes disso, as ambulâncias de resgate só estavam equipadas para atender traumas.

ISTOÉ – A maioria das pessoas no mundo conhece os serviços de emergência médica através dos seriados de tevê. Eles refletem a realidade?
Agnaldo Píspico

Temos algumas estatísticas interessantes quanto aos seriados. Naqueles em que as vítimas são atendidas ainda fora do hospital, por exemplo, você nunca vê ninguém morrer. Eles só mostram casos onde as pessoas sobrevivem, o que dá a entender que a sobrevida é de 100%, que ninguém morre. Só que depois vem a frustração porque, na realidade, 70% das pessoas atendidas fora do hospital morrem. A situação chegou a um ponto tão crítico que a American Heart Association pediu mudanças. Esses programas influenciam muito. Mas tem uma coisa boa. As pessoas começam a entender que quando alguém passa mal tem de chamar a emergência.

ISTOÉ – O que significa ser um médico especialista em emergência?
Agnaldo Píspico

Emoção. Quando as pessoas perguntam para mim qual a minha profissão eu digo médico. Especialidade? Cardiologia e UTI. E o seu hobby? Emergência. Não pude me dedicar só a emergência porque esses profissionais têm uma qualidade de vida muito ruim. Para se ter uma idéia, o médico americano especialista em emergência ganha U$ 75 a hora, o brasileiro ganha R$ 19. Tenho meu consultório particular e boa renda familiar. Por isso, posso me dar ao luxo de fazer atendimento de urgência.

ISTOÉ – Qual o perfil do médico emergencista no Brasil?
Agnaldo Píspico

Nós não temos médicos especialistas em emergência no Brasil. Não há residência específica nessa área. Hoje, começamos a ver algum movimento das universidades para tornar a emergência uma especialidade. O que temos por enquanto são médicos que fazem, por exemplo, cirurgia geral e dão plantão em emergência. Por isso, o perfil do profissional que trabalha em emergência é o de um apaixonado pelo que faz. Ou, então, é um médico que não tem consultório, trabalha no pronto-socorro, ganha pouco e tem pouco treinamento. Isso é muito ruim para a população. Muitos médicos, quando resolvem trocar de carro, vão dar plantão na emergência. Mas costumo dizer que emergência não é bico.

ISTOÉ – Para você qual a principal diferença entre o médico emergencista e o clínico?
Agnaldo Píspico

A adrenalina. O médico de emergência não pensa para agir. Quando há um acidente, por exemplo, passa um filme na sua cabeça de tudo que você tem que fazer. Você age por reflexo. Tudo já tem que estar na cabeça e é por isso que tem que treinar, treinar. E com o tempo a equipe começa a ficar redonda, a agir em conjunto. É como se fosse uma orquestra. O emergencista tem de estar disponível a qualquer hora, em qualquer lugar. Tem de sair correndo da cama, do restaurante, de onde estiver. Significa até cair na escada de casa porque “voou” para salvar vidas.
 

ISTOÉ – Qualquer hora é hora na sua profissão?
Agnaldo Píspico

Sim. Por exemplo, os jogos da Seleção Brasileira são um sonho para mim. Nas últimas três Copas, tive de atender emergências justo nas decisões. Um monte de gente infarta durante a partida. Só na final Brasil e França (em 1998) ninguém infartou. Mas, em compensação, no jogo Brasil e Holanda, que teve pênaltis, tive de correr para atender duas ocorrências.