Na primeira vez que o oncologista e escritor Drauzio Varella visitou a extinta Casa de Detenção de São Paulo, em 1989, até então o maior presídio da América Latina, sua alma foi tomada por uma espécie de presságio. “Quando entrei e a porta pesada bateu atrás de mim, senti um aperto na garganta igual ao das matinês do cine Rialto”, escreveu ele, referindo-se aos filmes de cadeia assistidos na infância, na introdução do best seller Estação Carandiru, que vendeu mais de 350 mil exemplares e nasceu de sua experiência de dez anos – na verdade, ele ficou 13 – naquela prisão como médico voluntário no combate à Aids. Varella não imaginava iniciar uma profunda relação com um universo aterrorizante e seus vários detentos, cujas histórias reproduziu. Nem
que eles seriam cruelmente eliminados no fatídico massacre de 2 de outubro de 1992, quando, para reprimir uma rebelião interna, a Polícia Militar tirou a vida de 111 prisioneiros. Ou que, finalmente, seu relato chegaria às telas pela câmera de um de seus pacientes, o argentino radicado no Brasil, Hector Babenco, diretor de Carandiru – lançamento nacional na sexta-feira 11.

Quando Babenco comunicou a Varella sua intenção de filmar a obra, o médico perguntou incrédulo se ele havia ficado louco. Acostumado a superar grandes desafios, Babenco encarou a loucura e realizou um longa-metragem de proporções grandiosas, um dos mais esperados dos últimos anos. Ao custo de R$ 12 milhões, cruzou as histórias de 26 personagens principais e 120 secundários numa espiral de narrativas que culmina com a sequência do inominável massacre, reunindo mais de mil figurantes. Mas é justamente por ser tão ambicioso que Carandiru decepciona. Seu primeiro erro foi transformar o médico (Luiz Carlos Vasconcelos) num observador passivo e monossilábico. É nas consultas com este alter ego de Drauzio Varella que os presidiários contam os episódios que os levaram à cadeia, aliás o melhor do filme, como o próprio Babenco queria. Também é assim no livro. No entanto, existe um abismo entre o médico-narrador literário e o médico-personagem cinematográfico, que, na transposição para a tela, não tem a mínima complexidade. Para ganhar consistência, precisava exibir um caráter mais opinativo que o onipresente sorriso de compreensão.

Por esta razão, toda vez que a câmera abandona o personagem do médico e salta para as histórias pessoais dos prisioneiros, o filme ganha em verdade e emoção. Algumas destas crônicas são até engraçadas, como a do sedutor Majestade (Ailton Graça), chefe interno do tráfico que não consegue se decidir entre uma das duas mulheres, a loira Dalva (Maria Luisa Mendonça) e a negra Rosirene (Aída Lerner). Outras são bem trágicas, a exemplo da que reúne os irmãos de criação Deusdete (Caio Blat) e Zico (Wagner Moura), parceiros de cela, um por assassinar os estupradores da irmã e o outro por roubo. Vítima de alucinações por uso de drogas, mais tarde Zico matará Deusdete com água fervente e, em troca, acaba executado pelos companheiros do famigerado Pavilhão 9. Mas o personagem que certamente provocará maiores comentários é o travesti Lady Di – papel do mais que galã Rodrigo Santoro – que, depois de se revelar “limpa”, isto é, sem o vírus da Aids, mesmo tendo se relacionado com mais de dois mil parceiros, resolve se casar com Sem Chance (Gero Camilo), numa cerimônia digna das narrativas de Jean Genet.

No livro e no filme, é importante destacar a forma como os presos são tratados em relação à sua individualidade e ao seu passado. Conhecer a fundo o indivíduo que cometeu determinado crime é o primeiro passo para a sua provável transformação. Com certeza, esta é uma das intenções de Drauzio Varella em Estação Carandiru. Infelizmente, porém, algo se perdeu na tela, especialmente quando Babenco se deixa seduzir por estratégias de convencimento. Ao
irromper o massacre, numa sequência que prima pela prolixidade – um sobrevivente acha tempo para ler o Salmo 91, passagem que no livro não incomoda mas no cinema parece descabida –, todas as boas intenções de Carandiru escorrem pelo bueiro como na enfática cena da enxurrada de sangue misturada a espuma de sabão descendo as escadas do presídio. Depois de fazer o espectador se identificar com a figura do médico bonachão, transformado aos poucos num padre sem batina, que troca o estetoscópio pelo ouvido de confessor, Babenco coloca os sobreviventes falando para a platéia as barbaridades cometidas pela polícia militar. Não adianta justificar, ao final, que foram ouvidos apenas os presos. Tudo soa falso, não pelo conteúdo, mas pela inadmissível chantagem com o espectador.