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Em Guaianases, zona leste de São Paulo, seis mil adultos analfabetos deveriam estar agora aprendendo a ler e escrever, em cursos ministrados por 165 professores da ONG Centro de Educação, Cultura e Integração de São Paulo. Para tanto, o Ministério da Educação (MEC) lhe repassaria R$ 632,9 mil. De tudo o que foi escrito acima, apenas o dinheiro do MEC é verdadeiro: do total reservado para a ONG, R$ 222,7 mil chegaram a ser liberados. Quanto aos analfabetos, a depender da ONG, continuam iletrados. Por quê? Simples. No endereço da entidade não há salas de aulas e muito menos professores. Na verdade, a ONG nem sequer existe. Outro descalabro com o dinheiro público pode ser aferido, segundo auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), na Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca). Ligada ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, a entidade recebeu, em 2003, R$ 554,4 mil para comprar material escolar que deveria distribuir gratuitamente, mas usou parte do dinheiro para imprimir 20 mil exemplares do livro A história da luta pela terra, que vendeu na loja e no site do MST por R$ 20 o exemplar.

Essas são histórias que colocam em xeque um modelo de gestão de recursos públicos: a parceria do governo federal com as entidades do chamado terceiro setor, as ONGs (Organizações Não-Governamentais) e Oscips (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público). No governo FHC, quando o modelo foi concebido pela primeira-dama Ruth Cardoso para os projetos do programa Comunidade Solidária, a idéia foi festejada como a solução para contrapor a letargia do Estado. Sem estrutura, o governo repassaria as verbas públicas para entidades filantrópicas da sociedade civil que, nas suas áreas de especialização, fariam o trabalho social. A verdade é que, em boa parte dos casos, em vez da filantropia imaginada inicialmente, a parceria da União com o chamado terceiro setor revelou-se um duto de desvio do dinheiro público. De 2001, quando o modelo foi criado, até o ano passado, o número de ONGs e Oscips no Brasil cresceu nada menos que 1.180%. O governo repassou a elas nesse período R$ 14 bilhões.

“O Estado não dispõe de instrumentos de fiscalização eficientes para verificar se esses recursos que estão sendo repassados realmente são utilizados”, afirma o ministro do Tribunal de Contas da União, Ubiratan Aguiar. A constatação de que o modelo faliu já começa a ser feita pelo próprio governo federal. “Nós hoje temos mais convênios com ONGs que com Estados e municípios; nós vamos reverter essa situação”, anuncia o ministro dos Esportes, Orlando Silva. “Não dá para terceirizar o serviço público”, avalia ele. No MEC, a inversão já foi feita. Até o ano passado, 80% das verbas do Brasil Alfabetizado iam para o terceiro setor e 20% para os Estados e municípios. Ao fechar agora os repasses deste ano, os porcentuais foram trocados. É o primeiro resultado prático de uma auditoria que o Ministério resolveu fazer no programa. E que constatou o tamanho do ralo por onde poderiam ter escoado boa parte dos R$ 51 milhões repassados para ONGs no ano passado.

De um total de 47 convênios firmados em 2006, a auditoria constatou que apenas 13 funcionam de fato. Nove ONGs, que chegaram a receber R$ 2,1 milhões, eram fantasmas, simplesmente não existiam. Sete delas são da Bahia e duas de São Paulo, o Ciesp e o Núcleo Cultural Direito ao Saber. Há outros 25 convênios que continuam com os recursos bloqueados para uma nova auditoria mais aprofundada. Para eles, estão reservados mais R$ 19 milhões. A expectativa do MEC é que em pelo menos metade dos novos casos problemas graves serão detectados. Mas há confusões provocadas pelo próprio MEC. A Associação Comunitária de Saúde, da cidade-satélite de Sobradinho, no DF, constava da estatística do Ministério como responsável pela alfabetização de mil alunos. Por exigências de documentação do próprio MEC, desde o ano passado, ela já não recebia dinheiro e, portanto, não ministrava cursos.

A situação verificada agora pelo MEC não é muito diferente da que o TCU já constatara em 2005 ao auditar convênios de vários ministérios com ONGs ligadas aos trabalhadores semterra. A auditoria encontrou problemas em todos os 109 convênios que analisou. “A rigor, a execução dos convênios não é fiscalizada”, resumiu o ministro Guilherme Palmeira, do TCU.

 

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DESVIO Documentos em poder de auditores do governo comprovam que entidades do terceiro setor desviaram milhões de reais dos cofres públicos sob a sombra de organizações não-governamentais