"Em Brasília há engrenagens diabólicas, e fora daquela cidade estou mais próximo de Deus." A frase é do ex-ministro da Aeronáutica, brigadeiro Mauro Gandra, que renunciou ao cargo em 1995 em função das denúncias de irregularidades na licitação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). Mas a escolha da empresa americana Raytheon para fornecer os radares do Sivam tinha sido decidida antes mesmo da posse de Gandra. Agora, no apagar das luzes do governo FHC, novas suspeitas recaem sobre a lenta, gradual e insegura licitação para o projeto F/X, destinado à compra inicial de 12 caças supersônicos para a FAB – orçado em US$ 788 milhões – que substituirão os velhos Mirage IIIE. Muitos oficiais da FAB se recusam a aceitar a versão oficial oferecida na terça-feira 20 pelo ministro da Defesa, Geraldo Quintão, e pelo comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista, negando pressões indiretas dos americanos para a escolha do caça JAS-39 Gripen. Essas pressões envolveriam inclusive a ação do secretário do Tesouro dos EUA, Paul O’Neil, como revelou ISTOÉ na semana passada. Embora fabricado pelo consórcio anglo-sueco BAe/Saab, o Gripen tem importantes componentes fabricados por empresas americanas. O objetivo dos EUA seria afastar da parada o caça Mirage 2000-5Br do consórcio entre a brasileira Embraer e a francesa Dassault, que até pouco tempo atrás era tido como favorito, entre outras coisas por permitir transferência de tecnologia ao País.

"Todo mundo sabe como essas negociações são feitas", disse o brigadeiro Álvaro Dutra, que foi assessor da Presidência da República no governo João Figueiredo (1979-1985). Dutra, um antigo oficial do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), argumenta que a sociedade brasileira investiu na criação do ITA, do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e na Embraer – com incentivos fiscais e verbas para projetos – justamente para evitar a dependência externa. Ele alega que na privatização da Embraer, em 1994, o governo adotou a cláusula da golden share (ação de ouro) para que a União tivesse um representante no Conselho da empresa e ela fosse obrigada a realizar projetos de interesse do País. "Assim, a Embraer não deveria ser contemplada com o projeto do caça para a substituição do Mirage-IIIE, mas sim obrigada a realizá-lo. Não pode se repetir, agora, no caso do caça, o que aconteceu nas privatizações e na encomenda de plataformas da Petrobras, ou seja: o estímulo à criação de empregos no Exterior", diz o brigadeiro.

Dutra deixa claro que não tem dúvidas de que se a decisão coubesse exclusivamente ao comando da Aeronáutica, certamente ela seria mais confiável. "O brigadeiro Carlos Baptista é uma pessoa bem intencionada, mas há, sim, injunções de política econômica", afirma. Dutra, um oficial com ampla experiência em aviação de caça, assim como Baptista, lembra a participação da Embraer no programa do caça AMX, em conjunto com a italiana Aermacchi/Aeritalia, que contou com grande volume de verbas e participação de oficiais como os brigadeiros Sérgio Ferolla e Lélio Lobo, entre outros. E indaga: "Por que houve tanto investimento naquele projeto, se, na hora de encomendar novos caças, a indústria brasileira tem de ceder espaço à indústria estrangeira?"

As declarações do brigadeiro Dutra não são isoladas, até porque nem sequer há unanimidade entre oficiais da Aeronáutica na defesa de um dos tipos de aviões que participam da licitação. Mas há, com certeza, um consenso de que a compra dos novos aviões deve servir para impedir que, nos próximos 20 anos, a Força Aérea Brasileira passe pelo mesmo constrangimento de ter uma defesa aérea sucateada – fato denunciado em 1987 pelo brigadeiro Cherubim Rosa Filho, ministro do Superior Tribunal Militar. "A solução mais adequada é aquela que permite a absorção da tecnologia de caças supersônicos pela indústria nacional, com absoluta garantia e, de preferência, através da Embraer", disse o brigadeiro Eden Asvolinsque. Para o oficial, que atuou na Junta Interamericana de Defesa, em Washington, antes de passar para a reserva, o brigadeiro Baptista – do qual foi subordinado na Base Aérea de Santa Cruz -, "não pode ser classificado de omisso no lento e tumultuado processo de escolha do novo caça. Mas o campo de alcance da decisão do comandante da Aeronáutica tornou-se muito pequeno, coisa que ele só não revela por razões éticas, em relação a interesses maiores de escalões aos quais está subordinado". Asvolinsque endossa a declaração do brigadeiro Sérgio Ferolla, do STM, de que "a escolha do novo caça não pode ser definida pelo lobby do sistema financeiro internacional, mas sim pelos interesses relacionados à soberania nacional’.

A controvertida licitação já foi analisada pelo Alto Comando da Aeronáutica, depois de avaliada pelo Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento (Deped), pelo Estado-Maior e por uma comissão de oficiais de alto nível. Por sua vez, o brigadeiro Baptista manifestou-se sobre a licitação, nas últimas duas semanas, também em palestra no Clube da Aeronáutica de Brasília, com a presença de oficiais da reserva, do Alto Comando e de ministros do Superior Tribunal Militar, em que alguns oficiais colocaram restrições aos critérios adotados.

No Clube da Aeronáutica de Brasília, Baptista também se referiu à proposta de leasing, por três anos, de caças israelenses Kfir, por US$ 93 milhões, negócio desaconselhado inclusive por diplomatas. Trata-se de uma solução de emergência para evitar um "apagão da defesa aérea" entre o fim de vida útil dos Mirage IIIE, em 2005, e a chegada dos novos caças, em 2007. "Não é conveniente, porque através deste aluguel o Brasil se envolve com o contexto militar do Oriente Médio, o que pode causar problemas, a médio e longo prazos", diz o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. A avaliação é endossada pelo brigadeiro Dutra, que acrescenta: "Eu jamais usaria minha influência como oficial da Aeronáutica para vender um avião superado ao governo brasileiro".

O brigadeiro Baptista não revelou, na entrevista coletiva realizada na terça-feira 20, em Brasília, que recebeu outra proposta de leasing. Executivos americanos teriam oferecido 12 caças F-16 que a Força Aérea Holandesa está desativando. Seriam vendidos por US$ 77 milhões. Apesar de serem mais baratos e mais modernos do que os velhos Kfir israelenses, estes F-16 não teriam interessado ao comando da Aeronáutica. Não haveria uma estrutura de apoio para receber os F-16 usados. Mas a polêmica está longe de acabar. O presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa da Câmara, deputado Aldo Rebello (PCdoB-SP), decidiu apresentar um pedido de informações sobre a licitação dos novos caças ao comando da Aeronáutica. Confessando-se alvo de especulações, o brigadeiro Baptista defende-se afirmando que "a seleção dos aviões foi baseada em um processo absolutamente limpo, e o Conselho de Defesa pode aprovar, mudar, cancelar, anular ou adiar a decisão".

A crítica de oficiais da Aeronáutica não é, entretanto, dirigida ao comando da Força, mas à forma com que o governo vem tratando a licitação, como se estivesse dando tempo para que a decisão final ficasse para o próximo presidente. Baptista já tentou marcar a reunião do Conselho de Defesa que vai definir, oficialmente, o avião escolhido, em julho, depois em agosto, mas não conseguiu espaço na agenda presidencial. Até o ministro do Desenvolvimento, Sérgio Amaral, que não faz parte do Conselho de Defesa, decidiu fazer algumas recomendações, como a inclusão, no contrato, da cláusula de compensação comercial (off-set). Amaral demonstrou, assim, desconhecer que em quase todas as suas negociações a Aeronáutica exigiu a inclusão desta cláusula nos contratos desde a década de 50.

Além da Embraer, mas com menos experiência em projetos militares, a Varig Engenharia também se considera em condições de absorver tecnologia de caças supersônicos, associada à Gripen International: "Temos condições de garantir o acesso à tecnologia do caça Gripen", diz o presidente da empresa, Evandro Braga de Oliveira. Mas a polêmica sobre a licitação dos caças não chega a surpreender um estrategista respeitado nas Forças Armadas e que também não coloca em dúvida a probidade de nenhum dos comandantes militares. Pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, o coronel Geraldo Cavagnari é enfático: "O Brasil já está atrasado na meta de produzir material militar em parceria com empresas estrangeiras e toda dependência tem um grau de risco." Para o militar, "um país como o Brasil deve procurar ao máximo possível reduzir esta dependência, mas o endividamento externo brasileiro é uma vulnerabilidade que chega a interferir nas negociações de material militar".

O oficial dá ênfase a uma realidade: "A dependência do País de capital externo constitui uma vulnerabilidade que afeta qualquer licitação de grande porte, especialmente aquelas que envolvem tecnologias de ponta." Mas na área de defesa, o País ainda não está, tecnologicamente, no fundo do poço. Fabrica submarinos, fragatas, corvetas, aviões de alarme antecipado e blindados. Isso porque os centros de excelência das três Forças Armadas, até agora, sobreviveram ao desmonte do Estado brasileiro.