Comemorar os 100 dias de governo, com direito a champanhe, é luxo para poucos. A data costuma provocar arrepios nos governantes. Mas não há como fugir deste ritual, cujas origens remontam a um episódio infeliz, pelo menos para Napoleão Bonaparte: seu governo de 100 dias, entre a fuga do exílio na Ilha de Elba, em 1º de março de 1815, até sua derrota final na Batalha de Waterloo. A mídia norte-americana institucionalizou o marco, ao julgar os primeiros 100 dias do presidente Franklin Delano Roosevelt, em maio de 1933. O idealizador do chamado “New Deal” (Novo Acordo) – através do qual combateu a depressão econômica com investimentos estatais – passou no teste e reelegeu-se por mais três mandatos. Criada a tradição, 70 anos depois chegou a vez do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Coincidentemente, o Fome Zero é inspirado no programa de distribuição de cupons de alimentação de Roosevelt.

Na quinta-feira 10, Lula terá cumprido pouco menos do que 7% de seu mandato. É como se tivesse passado apenas seis minutos do tempo regulamentar de uma partida de futebol. É muito pouco para chutar resultados, mas os primeiros 100 dias do petista foram intensos e mostraram o estilo do treinador: carismático, com seu jeitão informal e caloroso, ele continua recebendo aplausos, apesar dos erros cometidos por seus jogadores. Lula – que prometeu trabalhar 24
horas por dia nos seus quatro anos de mandato – tem um longo e tortuoso caminho pela frente nos 1.360 dias que lhe restam, a partir
da quinta-feira 10, ou 32.640 horas. A última pesquisa de opinião, divulgada na quarta-feira 2 – feita pelo Ibope para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) –, demostrou que Lula ainda distribuirá
muitos autógrafos e beijinhos: 75% aprovam a sua administração
e 80% confiam no presidente.

Lulinha Paz e Amor pretende encarnar o título de presidente pacificador, capaz de negociar com esquerdistas xiitas e conservadores. Terá a chance de mostrar o poder de sua lábia na votação das reformas previdenciária e tributária, que serão enviadas ainda neste mês ao Congresso. Nesse quesito, as lembranças do antecessor Fernando Henrique Cardoso sobre o início de seu primeiro mandato, em 1995, foram amargas: manifestações contra as reformas chegaram a reunir 10 mil pessoas. Até agora, o ex-metalúrgico surpreendeu os que apostavam que ele seria um vexame lá fora. Aplaudido pela elite mundial em Davos, na Suíça, foi recebido com pompa por líderes como o alemão Gerard Schröder e o francês Jacques Chirac.

Mostrou ousadia na política externa ao intermediar a crise vivida pelo venezuelano Hugo Chavez e ao criticar duramente a guerra de George W. Bush contra o Iraque de Saddam Hussein. Com o instável mercado, Lula foi mais do que diplomático. Manteve os juros altos, alegando que “não se dá cavalo de pau em transatlântico”. Colheu bons frutos: indicadores positivos na economia, apesar do clima de instabilidade gerado com a guerra. Conquistou credibilidade: 78% da população acreditam que Lula vai controlar a inflação, segundo o Ibope. Este fantasma, aliás, aparece em sexto lugar na lista de problemas nacionais.

Jogo de empurra – O desemprego é hoje o que mais assombra os brasileiros, de acordo com a pesquisa, seguido da fome, das mazelas do sistema de saúde e do caos na segurança pública. Este último item ficou mais evidente com o jogo de empurra entre os governadores que se recusam a hospedar o traficante Fernandinho Beira-Mar em seus presídios. Mas justamente na área social, o time pareceu amador. O governo lançou o Fome Zero de forma atabalhoada, sem explicá-lo à sociedade. A guerra à fome foi bombardeada por especialistas, destacando medidas paternalistas como a exigência de que os pobres usem os R$ 50 mensais para comprar apenas comida com a obrigação de apresentar recibos. Ao mesmo tempo, os petistas experimentaram o gosto amargo de enfrentar o MST, que já promoveu várias invasões, provocando a reação irada de fazendeiros.

Mas o governo promete grandes jogadas, como o lançamento do programa Primeiro Emprego, para beneficiar 500 mil jovens. Gato escaldado, desta vez o Planalto toma o cuidado de negociar os detalhes do projeto com vários setores antes de divulgá-lo, no simbólico Primeiro de Maio. Quanto à guerra interna, o governo está fazendo o possível para conter o crime organizado, mas o possível ainda não é o suficiente. Nem as propostas mais duras, como construção de presídios federais, combate à lavagem de dinheiro ilícito e redução dos direitos dos presos perigosos, convenceram os especialistas. “No Brasil, pensa-se que tudo se resolve pelo Código Penal, mas não é assim. O combate à corrupção é o principal. E ainda não vi nenhuma medida nesse sentido”, diz a juíza aposentada e deputada federal Denise Frossard (PSDB-RJ). Presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais, o juiz Wálter Fanganiello Maierovitch considera tímidas as ações. “O governo não está enfrentando de frente o crime organizado. Construir presídio federal é obrigação, não é política de segurança. Mudar a lei de execuções penais apenas não vai adiantar. É preciso criar uma emergência constitucional para combater o crime organizado. Temos vontade política para isso?”, provoca. Mas o secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, lembra: “Na última década, o crime avançou e o Estado recuou. O recuo da segurança pública foi o pior legado do governo FHC.”

Na articulação política, os jogadores petistas foram habilidosos. No primeiro teste no Congresso, na quarta-feira 2, atraíram os votos da oposição e domaram os radicais do PT, com a aprovação da emenda que altera o artigo 192 da Constituição, que regulamenta o sistema financeiro. Mas ao priorizar a governabilidade, Lula perdeu o apoio de muitos petistas. “Falta delinear o perfil do governo, mas as alianças e os compromissos assumidos até agora são indícios de uma política conservadora, sobretudo na área econômica”, critica o sociólogo Francisco de Oliveira, um dos fundadores do PT. Já o cientista político Luiz Werneck Viana, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, elogia: “Se o PT tivesse escolhido o enfrentamento e não a governabilidade estaríamos correndo o risco de ser uma Venezuela amanhã”. O deputado federal Chico Alencar (RJ) está apreensivo: “O governo se preocupa em sinalizar para o mercado e dá pouca atenção para questões relevantes como o desemprego.” Mas o deputado Jorge Bittar (RJ), secretário-geral do PT, comemora os gols na economia: “O governo não está sendo cauteloso demais, está atuando com sabedoria. Estamos no caminho certo.”

O que está mudando

Reformas

A vitória arrasadora no Congresso na votação da emenda constitucional que flexibiliza as regras do sistema financeiro fortalece o governo na arrancada pelas reformas tributária e previdênciária. Ambas estão em discussão e devem seguir ainda nesse semestre para a apreciação dos parlamentares.

Fome Zero

Apesar das dificuldades operacionais, a inédita disposição governamental em acabar com a fome está intacta. Metralhado pelos críticos, o projeto precisa chegar logo e definitivamente aos rincões do País antes de ter sua credibilidade arrasada por completo.

Salário mínimo

Deu um pulinho de R$ 200 para R$ 240, equivalente a um aumento real de pouco menos de 2%. A meta de dobrá-lo em quatro anos está de pé, mas já é considerada de difícil realização.

Desemprego

Continua crescendo o número de desempregados. Pouco (para não dizer nada) foi feito pelo novo governo em benefício direto da massa de desocupados. A reforma trabalhista, tida por muitos especialistas como um importante instrumento de geração de empregos, deve permanecer engavetada.

Diálogo

Um dos pontos mais elogiados é a disposição do governo em ouvir as diversas esferas da sociedade. O governo é aberto ao diálogo como nenhum outro da história. A pluralidade poderá resultar, no futuro, na redução das áreas de atrito do governo com seus interlocutores.

Abismo social

A violência campeia e a desigualdade social não regrediu um
milímetro sequer. A diferença, agora, é que pelo menos o ministro
da Justiça está montando um plano de ação e não vai deixar o
cargo nas próximas semanas por conta de um rearranjo político qualquer do ministeriado. Além disso, nunca um governo teve
tantos órgãos voltados para o bem-estar social (por mais precárias que sejam suas estruturas).

Indicadores econômicos

O câmbio desabou, os juros subiram e a inflação ainda dá sinais de aquecimento. A firmeza na política monetária acalmou o mercado financeiro, no Brasil e no Exterior. Resta saber como o governo vai manobrar o transatlântico na direção do crescimento e da distribuição de renda, como prometido.